Julius Robert Oppenheimer transbordava contradições. Era tímido e audacioso, ingênuo e brilhante, um marido leal que traiu, um homem gentil cuja bomba poderia matar milhões.
Que ele amava a física quântica pode não ser acidente. O campo sustenta que alguns fenômenos básicos do mundo material têm características opostas que não podem ser observadas simultaneamente, como comportamento de onda e partícula. Oppenheimer tinha um profundo afeto por esses pares irreconciliáveis, chamando-os de “a natureza da surpresa, do milagre, de algo que você não poderia entender”.
Em um universo de contradições, o próprio físico se tornou um herói americano e, também, um infame simpatizante vermelho. A questão sobre suas verdadeiras lealdades soou alarmes há 80 anos, quando o FBI investigou o passado de Oppenheimer, algo que agora, surpreendentemente, está ganhando nova atenção.
Nesta primavera, o Journal of Cold War Studies, uma publicação trimestral da Universidade Harvard, está revisitando o caso do físico.
Quatro historiadores argumentam que ele não era só um aliado comunista, mas sim um membro integral de uma unidade secreta de Berkeley que cometeu perjúrio em uma audiência federal que investigara seu passado. Como evidência, eles citam cartas, memórias e arquivos de espionagem, alguns posteriores ao material de origem do filme.
“Os historiadores têm que ir aonde as evidências os levam”, disse Gregg Herken, que lidera a reavaliação e é professor emérito de história na Universidade da Califórnia.
Em desacordo está Kai Bird, coautor de “Oppenheimer”, a biografia na qual Christopher Nolan baseou seu filme. O biógrafo negou que, nos 18 anos desde a publicação de seu livro, qualquer evidência tenha surgido confirmando que a estrela da ciência americana era de fato comunista.
“O único motivo pelo qual estão revisitando essa questão é por causa do filme de Nolan”, afirmou Bird. “Eles estão promovendo sua própria pequena cruzada.”
Alguns estudiosos veem ambas as afirmações sobre Oppenheimer como possivelmente verdadeiras —que ele era e não era um comunista dedicado. Pistas potenciais, argumentam eles, podem ser encontradas na complicada vida do físico.
“Ele pode ter vacilado”, disse Thomas L. Sakmyster, especialista em unidades comunistas clandestinas.
O físico e outros, segundo ele, “podem ter se considerado como companheiros de viagem”, ou seja, simpáticos ao comunismo, mas não membros formais do partido.
O amor de Oppenheimer por pares contraditórios cresceu e se tornou uma postura filosófica. Ele o emprestou de seu mentor Niels Bohr, também um físico quântico.
Bohr chamou isso de complementaridade. Ele viu os opostos da física quântica como um modelo de como a ameaça de aniquilação atômica poderia conter as sementes de sua própria abolição.
Oppenheimer fez o mesmo. Poucos meses após a destruição de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, o principal arquiteto da ruína das cidades argumentou que a nova arma também poderia acabar com a guerra. “Isso não é apenas um grande perigo”, disse Oppenheimer a seus colegas de Los Alamos, “mas uma grande esperança”.
Ar de outro mundo
Oppenheimer cresceu em um prédio elegante na Riverside Drive, em Manhattan. A coleção de arte de sua família incluía obras de Pablo Picasso, Vincent van Gogh e Paul Cezanne.
Formou-se em Harvard em três anos. Depois de estudar na Europa com os principais cientistas, lecionou física na Universidade da Califórnia, Berkeley. Erudito e carismático, ele tinha um ar de outro mundo que muitos de seus alunos imitavam.
Em meio às convulsões sociais da Grande Depressão, Oppenheimer, como muitos liberais dos anos 1930, pertencia a grupos de esquerda que denunciavam o fascismo no exterior e buscavam justiça econômica em casa.
Mesmo assim, o físico de elite tinha pouco em comum com os comunistas “portadores de cartão” de sua época. Os trabalhadores se juntavam a piquetes, iam a comícios e vendiam jornais que ecoavam a linha da União Soviética.
Na década de 1930, o Partido Comunista começou a cortejar médicos, advogados, professores, cineastas e outros membros das classes média e alta. Muitos estavam desconfiados da filiação. Em resposta, o partido nos EUA os encorajou a se juntar a unidades clandestinas em que os membros podiam estudar Karl Marx, adotar pseudônimos e trabalhar em segredo. Eles não carregavam cartões, ao contrário de seus camaradas trabalhadores.
“Foi arriscado e emocionante”, disse Sakmyster, professor emérito de história na Universidade de Cincinnati. Os membros secretos, acrescentou, tendiam a ser “muito idealistas, muito românticos”.
Esse foi o momento em que Oppenheimer abraçou o comunismo. Sua esposa, sua ex-noiva, seu irmão, sua cunhada e alguns de seus melhores amigos eram membros do partido. Ele se chamava de “companheiro de viagem”. Ele assinava o People’s World, um jornal comunista, e todo ano dava ao partido cerca de US$ 1.000, hoje equivalente a mais de US$ 20 mil (R$ 113 mil).
Isso poderia ter levantado suspeitas em alguns círculos, contudo não era ilegal. E a União Soviética em breve seria aliada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.
No entanto, após a guerra, Moscou obteve a bomba e construiu um arsenal ameaçador. Em 1954, no auge da era anticomunismo de Joseph McCarthy, Oppenheimer enfrentou uma audiência secreta para determinar se representava um risco à segurança. Sob juramento, o chefe científico de Los Alamos negou pertencer a uma unidade comunista secreta ou ter qualquer tipo de afiliação comunista formal.
Herken, que escreveu um livro em 2002 sobre Oppenheimer, disse que a trilha de evidências contrárias começa com duas memórias inéditas.
A primeira, de Haakon Chevalier, o melhor amigo do físico em Berkeley, contava sobre os dois homens se juntando à unidade secreta. A outra, de Gordon Griffiths, um estudante de pós-graduação que se tornou historiador na Universidade de Washington, disse que ele havia sido o contato comunista do grupo e que Oppenheimer era membro.
A biografia de Bird, que ganhou o Pulitzer em 2006, descartou tais evidências como insubstanciais. “Francamente, qualquer tentativa de rotular Oppenheimer como membro do partido é um exercício fútil”, declararam Bird e Martin J. Sherwin, coautor da obra.
Entretanto, novas pistas continuaram surgindo. Em 2009, John Earl Haynes e Harvey Klehr, historiadores do comunismo americano e espionagem soviética, citaram relatórios antigos de inteligência soviética que viram como clara indicação de que “Oppenheimer havia mentido” para autoridades americanas sobre sua filiação partidária.
Em linguagem de espiões soviéticos, o termo para o Partido Comunista americano era a “organização dos compatriotas” ou às vezes apenas o corpo “fraternal”. Os relatórios mostraram que altos funcionários da inteligência soviética fizeram repetidas referências a Oppenheimer como sendo um “membro secreto” do partido. Eles até deram ao físico um nome de código: Chester.
As evidências cresceram. Em 2012, Haynes e Klehr citaram um novo documento que chamava Oppenheimer de membro não reconhecido do Partido Comunista. O antigo relatório de inteligência foi endereçado a Lavrenti P. Beria, chefe político do programa soviético da bomba atômica.
Barton J. Bernstein, professor emérito de história na Universidade Stanford, que estudou o caso Oppenheimer por décadas, disse que inicialmente estava cético em relação às ligações comunistas formais do físico, entretanto hoje vê as evidências como “esmagadoras”.
Bird, em contato com um repórter, chamou os historiadores de mesquinhos. Além disso, em uma troca de emails, desqualificou os relatórios de espionagem citados por Haynes e Klehr como “evidências frouxas”.
A verdadeira história, afirmou Bird, é que o carisma de Oppenheimer inspirou amplos sentimentos de lealdade pessoal e até devoção. Todos queriam pensar que “ele era amigo, colega, camarada”, segundo o biógrafo.
O poder de atração carismática do físico, conforme Bird, estendia-se aos membros “da inteligência soviética que estavam encantados com qualquer relatório que indicasse que ele talvez fosse um ‘conterrâneo’. Todos queriam acreditar que Oppenheimer estava do lado deles. E Oppenheimer não fez nada para desiludir seus amigos no Partido Comunista de que ele era mais do que apenas simpático.”
Charles Oppenheimer, porta-voz da família, também rejeitou a ideia de que seu avô pertencia a uma unidade secreta. As reuniões em Berkeley, segundo ele, não passavam de amigos se reunindo para falar de política.
“É tudo ridículo”, afirmou Charles.
Comunista e não comunista
Em meio a essas disputas públicas, outros historiadores propuseram um caminho intermediário.
Em uma entrevista de 2002, Priscilla J. McMillan, historiadora de Harvard e autora de uma biografia de Oppenheimer, argumentou que comunistas trabalharam arduamente para atrair figuras importantes como o físico. Para facilitar o caminho, eles relaxariam as regras de admissão secreta.
Os funcionários do partido, afirmou McMillan, “queriam tanto ter algum tipo de conexão com uma pessoa da proeminência dele que permitiriam que você escrevesse seu próprio bilhete”. Essa liberdade, acrescentou, também pode ter dado a Oppenheimer “uma maneira de pensar que ele não era membro”.
Sakmyster, que estudou as unidades secretas para seu livro de 2011, “Red Conspirator” (conspirador vermelho), deu um exemplo desse tipo de acomodação. Segundo ele, os membros dos grupos clandestinos poderiam dispensar as contribuições regulares —um dever para a base. Membros secretos, ainda de acordo com ele, tinham a opção de fazer grandes doações, de preferência em dinheiro, porque era difícil rastrear.
Ele acrescentou que a renúncia a cartões e contribuições regulares levantou questões básicas para ele sobre se os membros da unidade secreta eram verdadeiros comunistas. “É uma dificuldade”, disse Sakmyster, sobre como determinar o que definia um comunista naquela época.
No geral, os defensores de um caminho intermediário veem Oppenheimer como sendo e não sendo um verdadeiro comunista.
Alex Wellerstein, historiador da ciência no Stevens Institute of Technology em Hoboken, Nova Jersey, descreveu a unidade de Berkeley como “projetada para ser plausivelmente negável”, mas a desprezou como “um grupo ineficaz de professores que brincavam com política subversiva”.
Da mesma forma, Wellerstein, ecoando McMillan, levantou a possibilidade de que Oppenheimer “reescreveu sua própria memória” para que pudesse se considerar mais facilmente como um “companheiro de viagem” em vez de como membro do partido.
Acusação vermelha
Depois da guerra, Oppenheimer aproveitou a ideia de complementaridade para pressionar pelo fim da bomba. Ele pediu o estabelecimento de um governo mundial que proibisse ameaças mortais e promovesse fins pacíficos. Também pediu a Washington que se contivesse no desenvolvimento da bomba de hidrogênio e revelasse segredos atômicos.
Mas, em 1954, depois de submeter Oppenheimer a um julgamento humilhante, o governo revogou sua autorização secreta e o declarou um risco à segurança.
O físico e sua esposa buscaram refúgio nas Ilhas Virgens. Oppenheimer sofria frequentes pesadelos. O casal entrou em conflito com seus vizinhos. Ele nunca mais se pronunciou publicamente sobre política nuclear. Por 13 anos, até morrer aos 62 anos, o físico permaneceu em silêncio. Por quê?
Na nova edição de seu livro, que saiu meses após o filme, Herken argumenta que Oppenheimer ficou em silêncio porque “desesperadamente queria” esconder seu passado vermelho. Admitir a verdade em seu julgamento de 1954, segundo ele, teria contradito suas negações anteriores e o deixaria vulnerável a uma acusação de perjúrio. Segundo a lei federal, o perjúrio pode levar a até cinco anos de prisão.
“A possibilidade de que sua filiação partidária secreta viesse à tona”, escreveu Herken, “o assombrou pelo resto de seus dias”.