“Amar é dar o que não se tem” é o início de uma célebre frase de Lacan, psicanalista francês. A frase completa, no entanto, é: “Amar é dar aquilo que não se tem para alguém que não o quer”. Acho simbólico que a pergunta do leitor tenha —consciente ou inconscientemente— editado a formulação original. Por que, ao reduzi-la, não só desviamos do pensamento de Lacan, como abrimos espaço para um outro tipo de leitura que une o pior da tradição romântica com o mais assustador da lógica tecnológica: a romantização do sacrifício e a ideia de um “amor on demand“, funcional para o outro ainda que custe a quem ama.
Isolada de seu contexto, “Amar é dar o que não se tem” corre o risco de virar um elogio à renúncia absoluta, à adaptação cega às demandas alheias. Como se amar fosse sempre doar-se até a última gota, abrir mão de si, suportar a dor como se isso fosse prova de comprometimento. Quando pensávamos ter superado esse dogma do amor romântico, o contemporâneo nos traz a estética da superação como fetiche emocional de ideal de vida, que se traduz em clichês como “Trabalhe enquanto eles dormem, viva o que eles sonham.”; “no pain, no gain”(sem dor, sem ganho) ou “Se você descansasse menos e se odiasse um pouco mais, já teria chegado lá.” Infelizmente esse tipo de discurso meritocrático tem nos levado à sensação de que sofrer é condição mínima para existir com valor. E se estamos aplicando isso na forma como trabalhamos, comemos e nos exercitamos… passamos a correr o risco de naturalizar essa lógica também no amor.
Vejo aqui dois perigos. O primeiro é que no amor esse sacrifício tem gênero. Historicamente, fomos ensinadas, nós mulheres, que amar exige entrega irrestrita. Que mulher que ama aguenta, perdoa, dá — mesmo quando não tem. Desde pequenas, aprendemos a ser úteis. A cuidar, acolher, escutar, suportar. O amor, para nós, virou missão de anulação: ser solução para a dor do outro e provar seu amor pela capacidade de se anular.
O segundo perigo é reforçar a lógica da sociedade do desempenho, como aponta Byung Chul Han, na qual somos constantemente pressionados a sermos produtivos, eficientes e a “fingirmos até conseguirmos” (fake it until you make it, diz o ditado motivacional americano). Tentamos entregar o que não temos, performando um ideal de parceiro segundo os moldes do mercado afetivo. Queremos tanto performar que não nos permitimos simplesmente ser. Tampouco estamos abertos ao ser do outro. Humano. Falível. Faltante. Talvez ele também esteja nos dando o que não tem, numa tentativa de demonstrar afeto. Por que será que estamos tão sós?
E a provocação que quero trazer é: Você que se sacrifica para ser o bom partido, a mulher interessante… Você que dá o que não tem na esperança de adentrar o mundo do amor…. Você sabe qual é a demanda do outro? E a sua? Em tempos de IA existe uma agenda que nos faz acreditar que existe, sim, resposta certa e entendimento absoluto e encaixes perfeitos.
É oportuno termos essa discussão justamente num momento em que Mark Zuckerberg deu uma série de entrevistas para grandes podcasts como o de Dwarkesh Patel apontando que o futuro da Meta IA é oferecer amigos, terapeutas e parceiros afetivos, como uma espécie de amor personalizável. Zuckerberg entendeu que o afeto virou produto.
“Acho que as pessoas vão querer um sistema que as conheça bem e que as compreenda como os algoritmos fazem”, defende Zuckerberg, que em seu projeto ambiciona oferecer IAs que saibam do que gostamos, que se antecipem aos nossos medos e não julguem nossas manias. Se já estamos com dificuldade de lidar com a alteridade, imagina quando tivermos versões em holograma de nossas próprias projeções românticas… sonho ou pesadelo?
Na inteligência artificial, existe a promessa e a oferta de respostas rápidas, certas, inteligentes, objetivas e que resolvam problemas. Com medo de nos tornarmos obsoletos no amor, nos debatemos tentando também espelhar esta lógica em nossos vínculos e, com isso buscamos compulsivamente as palavras certas, os programas certos, as conversas certas… “Já vemos que uma das principais coisas que as pessoas estão usando a Meta AI é para conversar sobre situações difíceis que precisam enfrentar com outras pessoas em suas vidas. ‘Estou tendo um problema com minha namorada. Me ajude a ter essa conversa da melhor forma'”, explica Zuckerberg, orgulhoso de suas ferramentas. Mas no amor e na relação quem determina o certo, o melhor?
E ainda que se relacionar com uma IA pareça algo completamente distante para você, infelizmente a lógica performática e utilitarista já se infiltrou em suas relações. Segundo pesquisa do Guia Bolso, 48% dos brasileiros já escondeu dívidas de seus parceiros para aparentar uma vida financeira mais próspera do que efetivamente tinham.
Por isso é preciso voltar à Lacan. Mas a sua frase completa “Amar é dar o que não se tem a quem não o quer”. Nessa articulação, o psicanalista propõe um amor que vai na contramão da produtividade, da eficiência, de Zuckerberg e da lógica de que quem ama entende o outro absolutamente e, por isso, sabe o que oferecer e também o que pedir. O amor proposto na frase de Lacan é menos performático, tarefeiro e também menos prepotente de supor que pode entender os códigos, antecipar demandas e garantir a permanência do vínculo pelo fato do outro depender de você.
E por propor esse amor sem performance, sem controle, sem entendimento e sem completude esse é um convite corajoso a viver um amor que é também angústia. Angústia que vem ao perceber que sempre vai faltar algo. Em mim, no outro e no vínculo. Angústia que chega ao entender que o desejo do outro é radicalmente outro; sempre dividido, sempre insaciado (assim como o seu).
Ser atravessado por essa angústia sem negá-la e também sem tentar suprimi-la e, pelo contrário, oferecer a própria falta e incompletude ao outro é o grande gesto de amor, coragem, liberdade e humildade. Liberdade e humildade ao abrirmos mão da parte Zuckerberg que vive em nós para nos permitirmos desistir do plano de supor que saberemos o que o outro quer e, com isso, transformar nosso afeto em produto. Talvez seja hora de deixarmos de tentar ser tudo. O outro não nos amará por que temos algo a oferecer. Ele nunca saberá ao certo por que nos ama, nós tampouco. E se a IA ou a tal Meta IA te prometerem respostas simples pra essas perguntas… duvide delas. Ali está só mais alguém que parou no início da frase de Lacan, e que está te dando o que não tem: certezas no amor.
Amor não é fusão, é fronteira. Não é encaixe, é encontro e desencontro. Fica aqui o meu convite para uma relação de faltas compartilhadas. De menos utilidade e mais testemunho. De um amor que é bom não porque completa o outro ou por que o outro te completa mas porque suporta a própria incompletude do outro e da relação sem desmerecê-los por esse traço maravilhosamente humano.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.