A ministra Maria Elizabeth, do STM (Superior Tribunal Militar), deve abrir divergência ao votar na retomada do julgamento dos militares do Exército que mataram, em ação com 257 tiros, o músico Evaldo Rosa e o catador de recicláveis Luciano Macedo.
O julgamento foi interrompido em fevereiro deste ano, quando a ministra pediu vistas (mais tempo para análise) do processo. A retomada do caso está marcada para 18 de dezembro.
O relator do caso, ministro-brigadeiro Carlos Augusto Amaral de Oliveira, votou pela redução de até 28 anos da pena de oito militares envolvido no assassinato de Evaldo e Luciano. Ele foi acompanhado pelo ministro-revisor José Coêlho Ferreira.
Segundo fontes a par do julgamento, Elizabeth deve votar pela manutenção das condenações em patamares elevados, mas com destaque à individualização das condutas de cada um dos oito investigados.
Ela considera o caso como emblemático, uma vitrine da Justiça militar para o país. Já se manifestou a interlocutores contrária à benevolência, por corporativismo, com os militares envolvidos nos homicídios.
Os militares foram condenados na primeira instância da Justiça Militar em 2021. As penas variavam de 28 a 31 anos e 6 meses de prisão pelos crimes de homicídio qualificado contra duas vítimas e tentativa de homicídio de uma terceira.
No voto, o tenente-brigadeiro Amaral afirmou que os militares não tinham interesse em matar as vítimas. Por isso, votou pela absolvição dos réus pela morte de Evaldo Rosa, alegando legítima defesa, e sugeriu fixar a condenação pelo assassinato de Luciano como homicídio culposo, quando não há intenção de matar.
“Não há como aceitar o entendimento da sentença dizendo que os agentes agiram deliberadamente. É inarredável o desdobramento dos fatos com o ocorrido na Vila Militar de Guadalupe. Eles não saíram do quartel com o objetivo de realizar uma chacina”, disse Amaral.
O advogado André Perecmanis, que representa as famílias das vítimas, diz que aguarda “com bastante esperança o voto da ministra Maria Elizabeth, confiando que seja revertido o entendimento adotado pelo ministro-relator”.
Rodrigo Roca, advogado dos militares condenados, afirma que a abertura da divergência por Elizabeth não seria uma novidade. “Ela já praticamente antecipou o voto [na sessão anterior de julgamento], já abriu a divergência, embora não tenha feito oficialmente, no que foi acompanhada de certa forma por outro ministro, que chegou a sugerir a anulação de todo o processo. Tudo pode acontecer”.
O caso ocorreu em abril de 2019. Um comboio com 12 militares se deslocava do 1º Batalhão de Infantaria Motorizada Escola para os apartamentos funcionais do Exército em Guadalupe, na zona oeste do Rio de Janeiro.
No caminho, os 12 militares flagraram o roubo de um Honda City. O proprietário do carro foi rendido por uma pessoa armada, e parte do grupo criminoso fugiu do local em um Ford Ka.
Os militares do Exército tentaram perseguir o carro e, no caminho, encontraram um outro Ford Ka semelhante, que passava a metros do local do crime.
O músico Evaldo Rosa dos Santos dirigia o veículo a caminho de um chá de bebê próximo à região. Ele levava no carro o sogro, no banco do passageiro, e a esposa, o filho de 7 anos e uma amiga nos bancos traseiros.
Os militares, confundindo os veículos, usaram fuzis para atirar contra o carro. Segundo a perícia, o primeiro disparo atravessou o carro e não feriu ninguém. O segundo, diz o laudo, entrou pela caixa de rodas e passou pelo banco do motorista, “atingindo a base das costas de Evaldo Rosa dos Santos, que começou a perder os sentidos”.
O carro percorreu cerca de 100 metros até parar. O catador de recicláveis Luciano Macedo, que passava pela região, viu Evaldo ferido e tentou socorrê-lo.
Mesmo desarmado e tentando prestar auxílio, ele foi alvo de uma sequência de tiros de fuzil.
Para reduzir as penas, o ministro Carlos Augusto Amaral de Oliveira colocou em dúvida a conclusão do laudo sobre a morte de Evaldo Rosa. O relatório da análise necroscópica concluiu que o músico morreu por hemorragia causada por um tiro na cabeça —o que, segundo a investigação, só pode ter ocorrido durante a segunda ação dos militares, ocorrida após a primeira leva de tiros.
Amaral, porém, reuniu trechos dos depoimentos de familiares do músico para defender que a vítima pode ter morrido durante a primeira ação dos militares, com um tiro de fuzil que o atingiu nas costas.
Para o ministro, as diferenças entre os depoimentos e o laudo necroscópico sobre o momento exato da morte de Evaldo Rosa levantam dúvidas suficientes para absolver os militares do homicídio.
Isso porque, na visão de Amaral, os primeiros tiros foram disparados quando os militares acreditavam estar em risco, diante de possíveis criminosos armados em fuga. A situação pode se enquadrar, na avaliação dele, como legítima defesa putativa, na qual o agente acredita se encontrar em situação de ameaça real, mesmo que ela não seja concreta.
Na segunda leva de disparos, quando o catador Luciano se aproxima do carro, Amaral diz que já não havia riscos para os militares. E, por isso, a ação configuraria homicídio culposo, segundo o voto do ministro.
Como Amaral defende, à revelia do laudo, que Evaldo morreu logo nos primeiros disparos, os militares são absolvidos em seu voto por legítima defesa.
Em entrevista à Folha, a viúva de Evaldo, Luciana dos Santos Nogueira, disse lamentar o voto do ministro. “É lamentável, muito triste o rumo que o julgamento está tomando. Se as pessoas que acompanham este caso sentem esse absurdo, imagine para mim, que sou esposa, imagine para o Davi, que é filho. É apavorante, desesperador.”