Desci da escada rolante e em vez de encontrar a loja, dei com uns tapumes. Fui até um segurança. “Amigo, licença, aquela SideWalk, aqui, fechou?”. O sujeito se aprumou, saindo do modo ser humano e entrando no corporativo. “Boa tarde, senhor. A SideWalk [breve pausa] encerrou suas atividades”.
Senti em “encerrou suas atividades” um tom de reprimenda. Como se eu, ao dizer “fechou”, tivesse sido, sei lá, agressivo com a loja. Olhei em volta, preocupado com a possibilidade da loja, apesar de ter “encerrado suas atividades”, estar passeando por ali e me ouvir falando de forma tão ofensiva sobre seu “fechamento”.
É uma praga do nosso tempo: a linguagem, que antes tinha o objetivo de dizer, agora busca desviar, como se chamar as coisas pelo que elas são fosse falta de educação. O gerúndio de décadas atrás já era um prenúncio. Em vez da violência do presente do indicativo, “envio”, a ação passou a ser diluída no “estarei enviando”, parcelada pela eternidade.
Algumas vezes, quando a demanda de reforma vem do politicamente correto, faz sentido. Substituir “aleijado” por “PCD” (pessoa com deficiência) não dói nada pra quem fala, mas diminui a dor de quem ouve. Além disso, PCD não machuca a comunicação, pois define exatamente a condição que pretende. O problema é quando esse avanço civilizatório engata a marcha a ré e começa a ser usado para mascarar a realidade.
A pessoa que primeiro chamou a velhice de “melhor idade” deveria ser processada por corrupção. Se é crime adulterar a fórmula de uma bisnaguinha ou vender capim como remédio pra diabetes, por que não o é agir de má-fé contra a compreensão da realidade?
“Melhor idade”? Jura? Rugas, calvície, artrite, artrose, pressão alta, artérias obstruídas, perda de capacidade cardiovascular, surdez, desprezo social, a proximidade da morte. Ah! Isso sim é a felicidade! Não aquela abundância de colágeno, músculos, vitalidade, ereção, lubrificação e pessoas como você em todos os filmes, séries e publicidade pra todo lado que olhar!
Convenhamos: chamar topada de cafuné não trará nenhum alívio ao dedão do pé. “Filosofar é aprender a morrer”, escreveu Cícero, há mais de 2.000 anos. “Comunicar é fingir que ninguém morre, nem sofre, nem envelhece, nem fecha” –dizem os CMOs (chief marketing officer) de 2024.
Houve um momento, no século passado, em que a competição entre a direita e a esquerda produziu bons resultados. O estado do bem-estar social é fruto disso. EUA puxando de um lado, União Soviética, do outro e no meio brotando direitos trabalhistas, direitos humanos, previdência, educação e saúde públicas. Claro que Carapicuíba não é como a Finlândia, mas as ideias foram plantadas.
Agora, na era das redes sociais, quando a batalha é centrada na comunicação, os movimentos identitários levantam a bola pros diretores de marketing cortarem. Daí a gente chega nessa realidade bizarra. A Polícia Militar joga um cara de cima de uma ponte, mata outro roubando produto de limpeza com dez tiros nas costas, tortura e mata mais de 50 em Santos, mas todas as empresas que apoiaram e apoiam o governador são super pró diversidade, têm pretos e até trans nas propagandas. Estamos “todes” bem. Menos, claro, aqueles que, infelizmente, por causa do “erro emocional” de “um colaborador”, “encerraram suas atividades” aqui na Terra.
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