Já me aconteceu muitas vezes, em muitos cenários diferentes, na fila do banco, nos pilotis da universidade, no show, no barzinho, no Carnaval. O roteiro é sempre o mesmo: estou sozinha, um homem se aproxima e puxa assunto. Respondo com poucas palavras, mas com educação. Ele chega mais perto. Começo a me incomodar e aviso que não estou interessada na conversa. Ele insiste. Peço para que se retire, que me deixe sozinha. Ele parte para um contato mais físico, tenta pegar minha mão ou coloca um dos braços sobre meus ombros. Eu tento me esquivar, mas ele segue tentando, seus braços se multiplicando, como um polvo bloqueando minhas rotas de fuga.
Eis que um outro homem aparece ao meu lado. Calmamente, ele se direciona ao sujeito que estava me incomodando. “Irmão, ela tá comigo.”
Imediatamente o sujeito pegajoso se esquiva, retraindo seus tentáculos e me deixando livre para fugir. “Opa, foi mal irmão”, ele responde sem olhar em minha direção, seu pedido de desculpas claramente dirigido ao seu igual. “Não sabia que ela tava acompanhada”.
Acompanhando o julgamento de Dominique Pelicot, essas memórias inesperadamente voltaram à superfície. O homem de 72 anos que, durante uma década, dopou sua esposa misturando tranquilizantes à sua comida e recrutando desconhecidos a virem à sua casa para estuprá-la foi condenado semana passada a vinte anos de prisão. Junto com ele outros cinquenta homens receberam penas que variavam de 3 a 15 anos de prisão.
Confesso ter acompanhado esse caso com uma certa obsessão. De um lado me fascinava a coragem de Gisèle Pelicot, a vítima, em tornar público seu nome e seu drama. “A vergonha deve mudar de lado.” disse Gisèle. Suas palavras me tocaram profundamente. Realmente, ela não havia feito nada, por que haveria de se esconder?
Por outro lado, a quantidade de homens num perímetro relativamente pequeno, num canto pacato da França, dispostos a estuprar uma mulher desacordada me perturbava. Eram homens comuns, diziam os advogados. Pais, avós, maridos exemplares. Jovens, velhos, bombeiros, soldados, jornalistas. Tratava-se de um grupo tão heterogêneo que ficava difícil determinar um denominador comum que não fosse o crime que cometeram: agredir sexualmente uma mulher em estado de semi coma, totalmente impossibilitada de oferecer consentimento.
Minha obsessão me levou a acompanhar os depoimentos de cada um deles. Foi ouvindo seus argumentos que vi emergir um padrão. Todos falavam sobre como não achavam que estavam fazendo nada de errado, como acreditavam que o consentimento do marido era o bastante.
E foi essa conclusão que trouxe aquelas lembranças à tona. De todos aqueles homens que me importunaram e ignoraram meus nãos, mas acataram o não daqueles homens que se prontificaram a reivindicar a posse de mim.
Me pergunto se algum deles teria seguido adiante se aqueles homens ao meu lado tivessem dito: “sim, pode continuar. É minha, mas eu autorizo.”
Infelizmente, a resposta que me vem à garganta é apenas uma: dada a oportunidade certa e o aval de seus pares, muitos homens cruzariam a fronteira tênue do correto.
E é em meio aos escombros tristes dessa conclusão que Gisèle Pelicot emerge como a heroína que precisamos. Ela nos lembra que temos voz e que essa voz precisa ser escutada.
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