Em 15 de março de 2019, a Unesco promoveu na sua sede em Paris o evento “Desenvolvimento da matemática, matemática do desenvolvimento”. O Brasil foi escolhido como caso de estudo, e eu fui convidado a explicar à audiência internacional de que modo o país construiu, praticamente do nada e em apenas algumas décadas, uma comunidade matemática de alto padrão internacional, capaz até de nutrir em seu seio um vencedor da medalha Fields, como o Artur Avila.
Étienne Ghys, professor da École Normale Supérieure de Lyon, secretário perpétuo da Academia de Ciências da França e, de longa data, brasileiro de coração, foi o moderador. Ele deu um pouco de spoiler da minha palestra: “A matemática no Brasil foi lançada por um punhado de gigantes que abriram mão de carreiras promissoras na América do Norte para voltarem a um país sem tradição em pesquisa científica e fazerem a diferença”. O que se seguiu foi, em grande medida, uma homenagem ao maior desses gigantes, Jacob Palis, pesquisador do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa).
Conheci o Jacob em setembro de 1985, por ocasião de uma conferência de matemática na Universidade de Coimbra. Ele era o conferencista principal, que daria a palestra de encerramento. Eu era um jovem recém-graduado que chegou na hora da conferência querendo apresentar um trabalho que tinha acabado de realizar, meu primeiro teorema.
Intimidado pela solenidade da situação, fiquei aliviado quando a minha palestra foi agendada para as 20h30 de sexta-feira: nesse horário só amigos muito queridos estariam presentes! Mas os colegas em comum que nos apresentaram também contaram ao Jacob sobre a palestra, e ele não hesitou: “Vou assistir, Marcelo!”
A presença dele atraiu muitos outros: na hora, a sala estava completamente lotada, o que não ajudou em nada o meu nervosismo. Disfarçando como pude, fiz a minha comunicação. Ao final, o Jacob me convidou a fazer doutorado no Impa. Seis meses depois eu estava aqui, e a minha vida nunca mais foi a mesma.
Nos anos que passei como seu orientando de doutorado, aprendi que interessar-se pelo que um garoto desconhecido poderia ter a dizer era típico da pessoa e do cientista que era. Nenhum assunto pertinente à pesquisa científica deixava de atrair a sua atenção. Eu sempre me surpreendia como ele sempre conseguia inserir mais interesses em sua agenda sobrecarregada, como se o tempo fosse elástico. Até hoje venho tentando aprender a técnica, mas ainda não cheguei lá.
Um colega que entendia de pássaros me contou uma vez que em certas espécies existem indivíduos particularmente valorizados, não só porque cantam muito bem mas, sobretudo, porque incentivam os demais a cantarem igualmente. Por seu carisma, generosidade e entusiasmo contagiante, Jacob tinha essa capacidade de inspirar aqueles que o cercavam. Ao longo da sua vida acadêmica, orientou 41 doutores e impactou as vidas de muitos mais cientistas ao redor do mundo.
Segundo Lan Wen, professor da Universidade de Pequim, na China, “Jacob tinha uma personalidade especial que atraía todos aqueles que o conheceram. Era um amigo da comunidade matemática chinesa, que ajudou a se integrar à comunidade internacional. Nós, matemáticos chineses, lhe somos gratos. O seu nome e o seu sorriso ficarão conosco para sempre”.
Meysam Nassiri, que foi seu doutorando e hoje é professor da Universidade de Teerã, no Irã, me enviou uma bela inscrição em persa definindo-o como “um homem imbuído de grandeza, cuja visão e caráter extraordinários contribuíram de modo transformativo e duradouro para o crescimento de novas gerações e o avanço da ciência e da matemática no Brasil e em todo o mundo”.
Slimane bem Miled, pesquisador do Instituto Pasteur e professor da Universidade de Tunis, na Tunísia, que fez pós-doutorado no Rio de Janeiro nos anos 1990, declara: “Quero dar testemunho da importância que Jacob teve não só na minha vida científica, como mais além. A sua maneira de ver os problemas me marcou profundamente”.
Para Servet Martinez, professor da Universidade do Chile e ex-presidente da União Matemática da América Latina e do Caribe, “além de ser um matemático excepcional, era um gigante em realizações científicas na nossa América Latina, e um grande amigo do Chile”.
Destacados matemáticos seus contemporâneos também declaram sua admiração. Dennis Sullivan, professor da City University of New York e um dos grandes topólogos dos nossos dias, me escreveu que “Jacob inspirava outras pessoas a aprenderem sistemas dinâmicos. Ele fazia coisas boas acontecerem, com bons sentimentos”. David Mumford, professor da Universidade Brown e vencedor da medalha Fields em 1974, declara que “Jacob era uma pessoa maravilhosa, com a capacidade para fazer coisas acontecer no mundo da matemática, e um amigo fantástico”.
E não foram apenas pessoas: o Jacob impactou igualmente as muitas instituições em que atuou, sempre de forma destacada e em posições de liderança. A Academia Brasileira de Ciências, que presidiu em 2007–2016, e a Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), de que também foi presidente em 2007–2012. A União Matemática Internacional, em cujo comitê executivo serviu por um tempo recorde (24 anos!), culminando na presidência em 1999–2002. E o Impa, claro, seu lar, que dirigiu em 1993–2003 e liderou por muito mais tempo.
A todas essas instituições trouxe sua notável visão estratégica, que lhe permitia discernir os caminhos a seguir, sua reconhecida astúcia política, e energia extraordinária para encaminhar a instituição por esses caminhos. Tudo isso vi em ação quando, por volta do ano 2000, ele liderou a conversão do Impa em organização social vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Uma mudança radical para uma instituição pública com quase meio século de existência, que o Jacob fez parecer fácil. Os avanços do instituto no quarto de século subsequente são prova contundente da sabedoria dessa decisão.
Jacob fez sua última viagem na quarta-feira passada (7). No dia seguinte, o conclave dos cardeais elegeu um papa matemático (Robert Francis Prevost é bacharel em matemática pela Villanova University da Filadélfia). Coincidência? Aqueles que conhecem o Jacob não têm a menor dúvida de que a esta altura ele já está aconselhando o Espírito Santo. E sendo escutado.