Aos 62 anos, Raimunda Nice Araújo testemunhou o surgimento da favela que é hoje a segunda maior do país, em número de moradores, de acordo com o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
“Eu acho que o governo não imaginou que Sol Nascente fosse ficar tão grande. Quando eu cheguei aqui para morar, em 1992, eu vim com autorização do governo. Aqui era tudo chácara”, conta Nice.
Os dados sobre as favelas e comunidades urbanas divulgados nesta sexta-feira (8) indicam que Sol Nascente, no Distrito Federal, só é menor que a Rocinha, no Rio de Janeiro —e por uma diferença pequena: 70.908 habitantes contra 72.021.
Em número de domicílios permanentemente ocupados, a favela em Brasília aparece em terceiro lugar no Censo, com 21 mil casas, atrás de novo da Rocinha, com 30 mil, e da também carioca Rio das Pedras, com 23 mil.
“Sol Nascente era cheio de nascentes mesmo. Lembro que no final de semana a gente enchia o carro de criança e ia para as minas d’água tomar banho. Soterrou tudo isso. O pessoal vai construindo, construindo…”, relembra a moradora.
A favela que cerca de 35 anos atrás era zona rural hoje quase não tem árvores, mas ainda não viu o asfalto chegar a todas as ruas. Outra moradora, Adriana Sá diz que sonha com a pavimentação na porta da loja onde trabalha.
“Direto tem buraco e os ônibus ficam todos atolados. Falaram que asfalto, mesmo, só ano que vem. Nos dias de chuva é muita lama”, conta a vendedora de 24 anos que vive na região desde os 8.
A expansão desordenada, sobretudo na virada do século, estabeleceu um paradoxo. Mesmo sendo a segunda maior favela do país em termos de área (atrás da 26 de Setembro, também no DF), a região tem poucos terrenos livres —uma das explicações dadas pelo governo para a falta de equipamentos públicos.
Parte de Sol Nascente vem recebendo infraestrutura básica —água e esgoto encanado, energia elétrica, rede de telefone e asfalto— nos últimos anos, mas a lista de demandas ainda é grande, especialmente por serviços de saúde e educação.
A presidente do conselho comunitário de segurança, Ivone Santos da Silva, cobra mais iluminação pública e mostra para a reportagem uma das poucas opções de lazer do local: um campo de futebol.
Os moradores tentavam cercar uma área para a construção de um parque, segundo ela, mas a grilagem de terras foi mais rápida e a vegetação acabou destruída antes.
“Quando você pede para alguém não construir, você esbarra na vontade das pessoas de ter uma casa. É um sonho. Se você chega e diz isso, você compra uma briga, perde amigos, vira uma guerra”, afirma.
Parte dos moradores reivindica o rótulo de cidade para Sol Nascente e convive hoje com um dilema: se, por um lado, a existência de uma favela em plena capital federal instiga os governantes a agir, por outro, constrange a população.
“A partir do momento que começaram a falar que era uma favela na porta de Brasília, no bigode do governo, começou a ter reação, desde o governo federal até o governo local”, diz José Valmir dos Santos, membro da associação de feirantes.
“Favela não tem o serviço que nós temos. Mas, agora, quando você fala no IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], aí sim. Nosso índice é baixo. Precisa de investimento, qualificação profissional, educação. As escolas nossas não atendem a demanda”, completa.
Em abril, o presidente Lula (PT) lançou a pedra fundamental para a construção de um novo campus do IFB (Instituto Federal de Brasília). Afirmou que a região não tinha “nada a ver” com o que se conhece de favela em outros estados, como Rio de Janeiro e São Paulo.
Ivone não se importa com o termo, mas diz entender a população: “As pessoas do Sol Nascente se incomodam e muito. Também pela questão do preconceito porque pensam em favela como local de gente ruim, bandida, onde só tem coisa errada. O que não é verdade.”
Desde 2019, as favelas de Sol Nascente e Pôr do Sol têm região administrativa (divisão criada no Distrito Federal para descentralizar os serviços públicos) própria. As manchas urbanas das duas ocupações não se encontram, mas estão ligadas a Ceilândia, a maior cidade do DF.
O administrador da região, Cláudio Ferreira Rodrigues, afirma que há determinação expressa do Governo do Distrito Federal para combater a grilagem de terras e reconhece que a população ainda precisa ir a Ceilândia.
“Uma coisa é uma cidade planejada, onde você acaba identificando muito mais fácil as áreas para colocar aparelhos públicos. Quando a área está em expansão sem ter uma organização acaba dando nisso. Mas o governo está ciente, tem trabalhado muito nessa questão e está empenhado para entregar vários aparelhos”, afirma.
“Nós também temos trabalhado muito na fiscalização para combater esse crescimento desordenado porque Sol Nascente hoje não suporta mais a questão dessa expansão.”
A gestão Ibaneis Rocha (MDB) diz que vai entregar até o final do ano uma unidade da Casa da Mulher Brasileira e afirma estar construindo uma escola. A administração regional também promete para a região uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e uma delegacia, mas não dá data.
A Secretaria de Obras também contesta o uso do termo favela. A pasta diz que “a região passou por uma transformação robusta, impulsionada por investimentos expressivos em infraestrutura e urbanização” e que o governo também ampliou o “acesso a direitos fundamentais como saúde, educação e mobilidade”.
“Hoje, cerca de 70% da área já conta com pavimentação, drenagem, redes de água e esgoto, além de serviços essenciais que trazem dignidade e qualidade de vida para os moradores. A regularização fundiária, liderada pela Codhab [Companhia de Desenvolvimento Habitacional do DF] também avançou, garantindo segurança jurídica e promovendo o desenvolvimento da comunidade.”