Em Georgetown, capital da Guiana, uma nova ponte sobre o rio Demerara, uma ilha artificial, prédios modernos e hotéis luxuosos se erguem como símbolos da riqueza prometida pela indústria petrolífera. Estrangeiros de empresas recém-estabelecidas ali já a apelidam de “nova Dubai“.
A ExxonMobil, petroleira norte-americana, domina a produção de petróleo na Guiana. Em 2015, ela anunciou uma das maiores reservas mundiais da última década, e desde então sua subsidiária, Esso Exploration and Production Guyana, lidera o consórcio do bloco petrolífero Stabroek, área de 26.800 km² na costa guianense, que inclui também a norte-americana Hess Corporation e a chinesa CNOOC.
Mas enquanto expande sua presença no país, a ExxonMobil enfrenta acusações de ambientalistas e ações na Justiça.
Segundo as denúncias, a empresa desrespeitou licenças ambientais para aumentar a produção e os lucros nos três campos ativos dentro do bloco: Liza (Fase 1 e 2) e Payara, que, juntos, produzem 650 mil barris por dia. Com outros três campos já aprovados, a estimativa é dobrar a extração para 1,3 milhão de barris diários, quando eles começarem a operar em 2027.
“Nossas instituições foram capturadas pelos interesses estrangeiros. A Exxon não é a única, mas com certeza é a mais flagrante”, disse a ambientalista Sherlina Nageer, fundadora do Greenheart Movement, iniciativa que defende alternativas ao setor.
A reportagem tentou contato diversas vezes com a ExxonMobil e sua subsidiária na Guiana, a Esso, mas não obteve resposta. Também foram procuradas as petroleiras Hess e CNOOC, que até a publicação não haviam respondido. O governo da Guiana também foi contatado, mas não se manifestou sobre os pontos levantados pela reportagem.
O país se consolida como um “petroestado”, onde a economia, as decisões políticas e as instituições são cada vez mais atreladas à indústria petrolífera.
Entre as práticas da ExxonMobil questionadas por ambientalistas e pela Justiça está o gas flaring –a queima de gás natural derivado da extração de petróleo. Esse processo despeja na atmosfera o gás excedente das operações quando não há interesse econômico ou infraestrutura para processá-lo. Mas ele libera grandes quantidades de dióxido de carbono (CO₂) e metano, causadores do aquecimento global.
A licença ambiental para o campo Liza Fase 1 –primeira reserva descoberta pela Esso– foi aprovada em 2017 com a proibição do flaring, exceto em casos de manutenção ou emergência. No entanto, entre 2019, quando o campo iniciou sua produção, em 2023, a petroleira registrou 1.298 episódios de queima de gás.
A informação é resultado de uma análise do projeto Até a Última Gota com base em dados da SkyTruth, plataforma que utiliza monitoramento via satélite para rastrear atividades prejudiciais ao meio ambiente. A partir desse levantamento, a reportagem teve a consultoria científica do Instituto Internacional Arayara, organização dedicada à defesa dos direitos ambientais, para calcular o impacto dessas ocorrências.
A análise revelou que, de 2019 a 2023, a ExxonMobil queimou 687 milhões de metros cúbicos de gás na costa da Guiana, liberando 1,32 milhão de toneladas de CO₂ na atmosfera. Esse volume equivale às emissões de quase 287 mil carros em circulação por um ano e posiciona a Guiana como o segundo maior emissor de gases de efeito estufa por flaring na Amazônia, ficando atrás apenas do Equador.
Em abril de 2021, ativistas notificaram a Agência de Proteção Ambiental da Guiana (EPA, na sigla em inglês), órgão responsável pelo licenciamento e fiscalização do setor petrolífero no país.
Mas apenas um mês após a denúncia, a EPA revisou a licença ambiental da petroleira, facilitando as condições para a prática de flaring. A agência permitiu a ampliação do prazo para a queima de gás, que passou de três para até 60 dias consecutivos, com a cobrança de US$ 45 por cada tonelada de CO₂ emitida no processo.
Vincent Adams é especialista em petróleo e gás, com mais de 30 anos de experiência no Departamento de Energia dos EUA, e comandou a EPA da Guiana de 2018 a 2020. Para ele, a decisão “subverte os princípios ambientais, porque agora o governo está basicamente dizendo: ‘Polua o quanto quiser, desde que possa pagar por isso’”.
Quando assumiu a agência guianense, Adams conta que se deparou com uma instituição despreparada para lidar com a indústria petrolífera: “Não havia sequer um engenheiro treinado em petróleo”. Ele lembra que o órgão funcionava como mero “carimbador” das solicitações da ExxonMobil e de suas empresas parceiras.
Em 2020, quando a Esso buscou licenciar o campo de Payara, o terceiro no país, Adams afirma ter exigido garantias financeiras para a compensação de acidentes ambientais, o que não havia sido pedido nos dois projetos anteriores. Segundo o especialista, os estudos ambientais apresentados para o licenciamento dos três projetos —praticamente idênticos entre si— indicavam que um vazamento de óleo na região poderia se espalhar por toda a costa da Venezuela e alcançar vários países do Caribe até a altura da Jamaica.
Adams deixou a agência em agosto de 2020, com a troca de governo na Guiana, e relembra que, apenas um mês depois, as licenças foram concedidas. “Quando eu saí, eles tomaram conta”, afirmou o engenheiro, que desde então se tornou um dos principais críticos do atual modelo de exploração de petróleo no país.
As controvérsias na exploração de petróleo na Guiana remontam às primeiras negociações. Após a ExxonMobil descobrir a primeira reserva no país em 2015, o governo precisou definir do zero os termos de um contrato de partilha para o bloco Stabroek, estabelecendo prazos para a exploração e os percentuais para a divisão de lucro e recuperação dos custos.
O acordo entre a Esso e o governo guianense foi negociado a portas fechadas em 2016 e permaneceu em sigilo até 2017. Tornado público apenas após forte pressão externa, o contrato tem sido alvo de intensas críticas, tanto de especialistas quanto da classe política.
O contrato estabelece que até 75% da receita bruta mensal gerada pela extração do bloco seja destinada ao pagamento dos custos de desenvolvimento e operação das empresas. O restante é dividido igualmente entre o governo guianense e o consórcio, resultando em uma participação de 12,5% da receita para a Guiana.
Além disso, o acordo prevê royalties de apenas 2% sobre o valor do petróleo vendido, um percentual inferior ao praticado em outros países. No Brasil, a alíquota pode chegar a 15%, enquanto nos Estados Unidos a taxa de royalties para exploração em terras públicas foi recentemente atualizada para mais de 16%.
Esta reportagem, publicada originalmente em InfoAmazonia, faz parte do especial Até a Última Gota, produzido com o apoio da Global Commons Alliance, um projeto patrocinado pela Rockefeller Philanthropy Advisors. O projeto envolve ainda os veículos jornalísticos GK, Ojo Público e Rutas del Conflicto.