Sei marcar em uma imagem as motocicletas, as faixas de pedestres, as pontes, os hidrantes. Eu não sou um robô.
Posso funcionar muito bem e parar de uma hora para outra porque a peça que fica na cavidade esquerda do meu peito resolveu assim. Por outro lado, posso estar caindo aos pedaços, pifando em diversos lugares e durar cem anos.
Com certeza não sou um robô.
Há pessoas me decodificam assim que me conhecem. Há outras que convivem comigo há décadas e não conseguem me entender.
Tenho um lado mais curto do que o outro. Tenho um dente mais torto do que o outro. Tenho um seio mais caído do que o outro. Tenho um olho mais aberto do que o outro.
Rio quando não devo rir, choro quando não devo chorar, grito quando poderia ser mais calma, tenho acessos de riso em horas impróprias, vez ou outra sou acometida por solavancos imprevisíveis chamados soluços.
Faço análises probabilísticas e, mesmo concluindo que certas coisas têm muita chance de dar errado, acredito que vão dar certo, acredito fervorosamente que vão dar certo.
Aleluia: não sou um robô.
Às vezes fico sem bateria e mesmo assim funciono. Às vezes quebro e mesmo assim funciono.
Sou da mesma espécie que Charles Manson. Sou da mesma espécie que Mahatma Ghandi. Sou da mesma espécie que Putin. Sou da mesma espécie que Madre Teresa. Sou da mesma espécie que Judas. Sou da mesma espécie que Einstein. Sou da mesma espécie que Tiririca.
Uma vez eu estava em uma reunião e entrou pela porta um homem que eu nunca tinha visto, e antes mesmo que ele se sentasse, antes mesmo que dissesse seu nome, senti meu rosto ficar vermelho e pensei que um dia beijaria aquela boca.
Je ne suis pas un robot.
Cuspo no prato que comi. Sinto inveja. Sinto ciúmes. Faço coisas desprezíveis. Sou mesquinha. Me arrependo. Me organizo para nunca mais: e faço de novo.
Roo uma coisa chamada unha que não tem sabor agradável. Cutuco uma coisa chamada ferida que foi feita para fechar. Estalo meus dedos porque: por que estalo meus dedos?
Com frequência perco células mortas, fios de cabelos, chaves, datas de aniversário, papéis de estacionamento, vencimentos de boletos.
Alguns de meus mecanismos estão sutilmente sujeitos à mudança da lua. Tenho impulsos. Às vezes compro coisas que não me programei para comprar com um dinheiro que não tenho.
Há comandos antagônicos dentro da minha cabeça.
Serei, não serei, serei, não serei um robô.
Escuto uma música e não sinto nada. No dia seguinte escuto a mesma música e meus olhos se enchem de lágrimas.
Pressinto coisas. Há outros como eu que sabem da morte de alguém antes que aconteça – e isso não envolve nenhum dado estatístico.
Dedico horas para coisas inúteis. Tarefas importantes eu procrastino, tu procrastinas, ele procrastina.
Arre, não somos robôs.
Tem dias que me sinto uma super heroína, tem dias que me sinto uma barata. Sinto, sinto, sinto. Amo, amo, amo. Faço coisas estranhas como dar tudo o que eu tenho. Me entregar sem retorno. Com tanto espaço no mundo, passar horas com a cabeça deitada em um único peito.
Sinto medo. Inclusive de ser substituída por um robô.
Me desespero, me atrapalho, erro, tomo caminhos inesperados.
Improviso, sou incoerente.
E é bem aí, onde sou mais frágil, que destrono o robô.
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