A morte do secretário-adjunto de Segurança de Osasco (SP) foi a terceira envolvendo um guarda-civil na região em menos de um ano. Em fevereiro passado, na vizinha Cotia (SP), um agente matou um inspetor, feriu gravemente o subcomandante da tropa e depois se suicidou.
Os episódios levantam questões sobre a saúde mental dos guardas, cuja atuação cada vez mais mimetiza as policias militares, por sua vez assolada por uma crescente de casos de suicídio. A falta de dados sobre as Guardas Civis Municipais, porém, dificulta a identificação dos problemas e a elaboração de políticas públicas para solucioná-los.
“A gente não tem tradição, na gestão pública brasileira, de ter pesquisas de qualidade de vida no trabalho, que possam fornecer esse retrato da situação de exposição à vulnerabilidades. Esse é um problema geral, que acontece também com relação às guardas-civis, onde há ausência de dados”, diz Eduardo Pazinato, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Só há menos de uma semana teve início o primeiro recenseamento das guardas municipais no país, conduzido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), que pediu que agentes de todo o país preencham um formulário do Google respondendo se existe GCM em determinado município, quem a comanda e qual o número de telefone do comandante.
Até aqui, qualquer política pública relacionada à segurança pública municipal encontra o entrave da opacidade de dados. “Quantas CGMs existem? Qual o perfil? Quais equipamentos têm? Temos 100 ou 130 mil guardas? Estão em quais unidades da federação? Tem atendimento psicológico? A gente não sabe”, continua Pazinato.
O Raio-X das Forças de Segurança Pública do Brasil, divulgado em fevereiro pelo próprio Fórum, contabilizou ao menos 1.467 Guardas Municipais estruturadas no país, um aumento de 23,5% em relação a 2019. Em julho, a Folha mostrou que, em 22 das 20 capitais com GCM, os agentes estavam armados. E os efetivos em Palmas, Porto Alegre, São Paulo, Vitória, Goiânia e Curitiba já possuíam fuzil.
Em Osasco, na segunda (6), o guarda-civil municipal Henrique Marival de Sousa matou a tiros o secretário-adjunto Adilson Custódio Moreira, seu superior, ao saber que seria deslocado de função.
A corporação havia sido reforçada, em 2022, com 55 pistolas Taurus TH40. O vereador Délbio Teruel (União), que destinou a emenda que permitiu a compra, disse que elas serviriam para “equipar a GCM no trabalho ostensivo do dia a dia”. A corporação já tinha a Ronda Ostensiva Municipal (ROMU).
O policiamento ostensivo, porém, não é atribuição constitucional da GCM. “A gente não deveria copiar as polícias militares. A lógica do militarismo é combater o inimigo, uma lógica de confronto. Mas não podemos ter o cidadão, ou o colega de serviço, como inimigo. Nossa luta é para que a GCM consiga retornar a sua essência, de policiamento preventivo, comunitário, em que o confronto é a última opção”, diz Reinaldo Monteiro, presidente da AGM Brasil, que representa guardas municipais.
Monteiro, guarda-civil em Barueri (SP), atendeu a Folha após sair do velório de Moreira, terceiro GCM morto em confrontos internos na região em um ano.
Em fevereiro, em Cotia, Nelson Fan dos Santos, que reclamava ter sido deslocado para o administrativo por não ter feito um curso necessário para manter o porte de armas, matou o inspetor Carlos Roberto Pires, acertou quatro tiros no subcomandante Luciano Stephani de Oliveira, que segue em recuperação, e se matou em seguida.
“Estamos fazendo um levantamento para entregar no começo desse ano, sobre esses casos, mas ainda não está pronto. O que a gente percebe é que muito indivíduo da segurança pública acha que tem que ter determinados privilégios, que ele não pode perder. Ele acha que ele é o melhor policial, o super-homem, que vai resolver tudo”, opina Monteiro.
O sociólogo Sergio Adorno avalia que a crescente militarização das policias brasileiras, não só a GCM, tem trazido impacto negativo. “Todas as pesquisas têm mostrado os efeitos negativos da militarização. Tem que ter polícia bem estruturada, bem preparada, mas isso precisa vir com investimento, treinamento, de pessoas que saibam lidar com situação de tensão, conflito, de medo da população. Pesquisas mostram que a população se sente mais ameaçada do que protegida pela polícia”
Hoje, as GCM devem ser treinadas de acordo com a Matriz Curricular Nacional para as Guardas Municipais da Senasp, que não inclui, por exemplo, o policiamento ostensivo. Na prática, em muitas cidades, o trabalho é distinto do que se aprende: o agente vê suas atribuições crescerem sem que ele receba a preparação adequada para elas.
“Uma coisa são os conflitos que ele estava sujeito numa interpretação restritiva das atribuições da GCM, e outra é esse reposicionamento estratégico, uniformizado, armado. O profissional de segurança pública está na fronteira da morte, dele e de terceiros, mas com esse reposicionamento ele encara outro nível de conflito, exposto a outros crimes e outros riscos”, avalia Pazinato , do Fórum de Segurança Pública.
“É necessário que as guardas criem políticas de saúde mental, criem corregedorias e ouvidorias, mas também que outras instituições, como o Ministério Público, façam o trabalho de controle externo”, afirma.