Neste 8 de janeiro, que marca dois anos de um brutal ataque à democracia, faço um alerta sobre a perigosa reação de governadores ao decreto sobre uso da força publicado pelo governo federal na véspera do Natal. A atitude mostra o quão equivocados estão sobre suas responsabilidades perante a segurança pública em um país democrático.
Para lembrar, o texto, que reitera que a força deve ser aplicada com bom senso e sem discriminação — sendo a arma de fogo o último recurso, condiciona o repasse de recursos federais aos órgãos de segurança estaduais à adequação a essas normas. Só o fato de ser necessário um decreto para determinar o que já deveria ser default nas políticas de segurança pública escancara o grau de descompromisso de um número relevante de governantes com a proteção da população, para não falar da democracia.
Quando comecei a trabalhar com segurança pública, estava cercada de policiais que se orgulhavam de seu treinamento para o uso legal e progressivo da força. Eram guardiões da boa conduta e do verdadeiro ethos de proteção cidadã e democrática que as polícias precisam carregar e exercer.
Hoje, os bons exemplos estão escanteados. São cada vez mais raras as manifestações de policiais falando contra os abusos dos pares. A polarização tóxica acirrou o corporativismo e intimida ou, no mínimo, inibe os bons policiais de se colocarem em público. O populismo extremista que rifa a segurança pública por motivos eleitoreiros, seja no Poder Executivo ou Legislativo, e que por vezes conta com o respaldo do Judiciário e do Ministério Público, mantém impunes os que abusam da força.
O resultado se vê nas barbáries cometidas pela Polícia Militar de São Paulo, registradas em vídeos de câmeras privadas, e nas que se manifestam em diversos outros estados líderes em violência policial, como Rio de Janeiro, Bahia e Amapá – além dos “erros” cometidos por policiais rodoviários federais ainda ‘empoderados’ pela gestão passada.
A ineficácia dos órgãos de segurança pública no Brasil se ancora na leitura rasteira de seus papéis e deveres. Sem inteligência, em todos os sentidos, a única arma proposta é a força bruta.
Não é preciso inventar a roda. É preciso, e urgente, que sejam exercidos os controles interno e externo previstos na legislação. Inclusive pelo Ministério Público, que, em boa parte, não vem cumprindo seu papel de fiscalização da atividade policial.
Por isso, o decreto é bem-vindo e precisa ser implementado com urgência. O governo federal deve usar todos os recursos de que dispõe para incentivar o uso responsável da força e a transformação das polícias militares e civis dos estados brasileiros em instituições cidadãs e democráticas.
Já passou da hora de a segurança pública ser compreendida e priorizada em sua totalidade, e em todos os níveis de governo e poderes do Estado. Segurança pública é um sistema integrado, que começa na prevenção, passa pelas polícias, defensorias, ministérios públicos, sistema prisional, e Judiciário.
A desestruturação das políticas públicas de prevenção e das condições do sistema prisional perpetua o ciclo vicioso da força bruta e sustenta o populismo autoritário. Nesse filme, que, como já vimos, leva à porta de entrada da derrocada da democracia, o descontrole das polícias é um spin-off a ser derrotado nas bilheterias para as eleições do ano que vem.
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