Palhaços barbudos empunham espadas de madeira. Todo o gestual tem o intuito de proteger o bem maior do grupo: a bandeira, ornamentada com fitas e flores coloridas que, mesmo ao sabor dos ventos, deixa clara a imagem da Sagrada Família e dos Reis Magos nela estampada. Cantores e tocadores —equipados de viola, sanfona, pandeiro— integram o cortejo de visitas, com o intuito de distribuir bênçãos em troca de presentes, nessas peregrinações religiosas denominadas jornadas ou giros. Porque hoje é o dia de Santo Reis.
A data do dia de Reis, em si, é comemorada na segunda-feira (6). Os festejos, porém, costumam acontecer em diferentes épocas do ano, sobretudo no período natalino. “Muitas vezes, a gente chega a cantar em 30 casas diferentes num só dia”, conta Carlos Eduardo da Silva Júnior, 27, da companhia de reis Du Catira, de Itapevi (SP), criada em 1958.
Ao lado do irmão, Diego Henrique, 16, da mãe, Flávia, 54, e do pai, Carlos Eduardo, 49, fundador do grupo, a família toda participa da Folia de Reis, tradição herdada do bisavô paterno. Com apenas 12 anos, a mais nova do grupo, Manuella Eduarda, faz parte da quinta geração de foliões.
A Folia de Reis é celebrada, principalmente, em Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo, São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, de acordo com a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Na capital fluminense, a festa pode se estender até o dia 20 de janeiro, quando é celebrado o dia de São Sebastião, padroeiro da cidade.
Há festejos em áreas rurais de São Paulo e também na região do ABC paulista. É no interior, todavia, onde a festa é trabalhada com mais afinco.
Inspirados nas viagens míticas dos Reis Magos, os festejos de origem católica estão presentes no Brasil desde o século 18. Em forma de auto, a Folia de Reis narra a jornada do nascimento de Jesus e a viagem dos três Reis Magos para visitá-lo em Belém.
Guiados por uma estrela, os reis viajantes do Oriente, Baltazar, Melchior e Gaspar, deram ouro, incenso e mirra ao menino Jesus, segundo a tradição cristã. O significado dos presentes tem diferentes interpretações. O ouro representava a realeza; o incenso, a divindade, a devoção; e a mirra simbolizava a humildade dos magos diante do menino e sua imortalidade.
Chamada pela Igreja Católica de Epifania do Senhor, a festa litúrgica recebeu influência de origens europeias, especialmente ibéricas. Por aqui, adotou formas e expressões regionais distintas em brincadeiras, músicas, danças e orações. A devoção aos Santos Reis, entretanto, permeia toda a celebração.
“Os cantos e versos muitas vezes são improvisados na hora, no calor do encontro”, conta Júnior. “Já recebemos pedidos variados: desde uma senhora que tinha perdido dois cachorrinhos queridos até mesmo de uma mãe preocupada com o vestibular da filha”, conta o rapaz, que seguiu a trajetória dos pais, dos avós e dos tataravós mineiros desde que era criança.
Geralmente formada por 12 integrantes, as folias são compostas por mestres e contramestres, responsáveis pelo canto. O alferes ou bandeireiro é o responsável por carregar a bandeira, estandarte da companhia, e apresentá-la aos chefes das residências visitadas. Há ainda foliões, instrumentistas e palhaços mascarados, vestidos com roupas coloridas feitas de chita, conforme versões arraigadas nas tradições populares.
“Os palhaços são os guardiões da bandeira, flâmula que representa a estrela guia. É ela que abre os caminhos para os foliões”, conta Inimar dos Reis, 60 anos, 40 deles dedicados à folia. “Ninguém pode passar à frente da bandeira”, explica.
Criador da companhia de reis Folias e Folguedos, ele é produtor e pesquisador de cultura popular. Costuma viajar pelo país em defesa das tradições culturais. Uma das missões é empenhar-se para que a Folia de Reis mantenha a sua relevância.
“Perdemos muitas lideranças no auge da pandemia da Covid. O pessoal tradicional, das antigas. Estamos fazendo um trabalho para trazer mais jovens aos grupos.”
Diz ele que a participação de novos integrantes vem crescendo nas folias, por interesse tanto cultural quanto religioso. Uma estratégia é realizar o périplo em datas fora da efeméride fixada pelo calendário católico. Hoje é comum ocorrer Folia de Reis em meses distintos como abril e setembro.
No interior paulista, as regiões de Palmital, São José do Rio Preto e São Luiz do Paraitinga costumam atrair muitas companhias de reis, assim como as mineiras Guaxupé e Jequitibá.
Reis e o seu grupo deram uma amostra dessa diversidade durante a 15ª edição do Natal Iluminado, iniciativa da Associação Comercial de São Paulo, em cortejo pelas ruas do centro da capital paulista, de 16 a 23 de dezembro passado.
É comum que as folias se formem como pagamento de promessas feitas a graças alcançadas. Normalmente, esses grupos mantêm o giro por sete anos para cumprir o juramento.
Diego Henrique, da companhia Du Catira, lembra que os médicos deram um mês de vida ao pai dele quando nasceu. “Meus avós fizeram promessas aos Santos Reis. O meu pai saiu na folia quando tinha um aninho e nunca mais parou”, conta.
As pessoas que recebem a bandeira dos Santos Reis em suas casas fazem pedidos de cânticos e orações à companhia em meio a uma atmosfera que muitas vezes mistura religiosidade com misticismo. “É comum pelo interior do Brasil a gente cantar também para um ente querido adoentado ou falecido, sempre a pedido da família”, explica Reis.
O cantador é quem pede licença para entrar nas residências e entoar músicas e louvores aos magos, via de regra, diante de presépios e lapinhas. Em troca, são ofertados donativos pelos familiares visitados.
Aqui cabe mais uma tarefa aos palhaços: a de recolher a oferta. “Recebemos galinha, bezerro, porco e até cavalo. Sem contar as sacas de milho e soja”, diz Júnior.
Normalmente, esses produtos vão a leilão, e o dinheiro é compartilhado entre os participantes das companhias.
Folia de Reis, Festa de Santos Reis ou Reisado, essas peregrinações guardam características que as diferenciam. De acordo com o pesquisador Reis, o reisado, por exemplo, costuma incorporar elementos alegóricos e carregar consigo mais integrantes.
Justamente por serem numerosos, os reisados não entram no interior das casas. Avançam, no máximo, até o terreiro ou o quintal da morada. Em ambos os casos, a oferta é bem-vinda para garantir a festa do ano que vem. “Yeah, yeah, yeah”, como diria Tim Maia.