Neste exato momento me encontro em terras norte-americanas. Confesso nutrir um certo ranço por este país que, depois de tudo o que viveu com aquele homenzinho laranja no poder, resolveu dar a ele uma segunda chance de acabar com o planeta. Mas o destino quis que família e amigos residissem por estas bandas e, depois de muito tempo sem visitá-los, resolvi ceder à saudade. Vale ressaltar que me sinto no direito de falar mal dos Estados Unidos, pois morei aqui por dois anos e vi de perto seus prós e contras, então possuo lugar de fala.
Nossa primeira parada nesta terra da oportunidade (cof cof) foi numa pacata cidade em New Jersey, onde mora minha irmã. Ao chegar, fomos recebidos por um céu carregado de nuvens e uma garoa fina que não chegava a molhar, mas era suficiente para tornar desagradável qualquer passeio de mais de dez minutos ao ar livre. Diante do clima pouco amistoso, resolvemos nos abrigar numa expedição antropológica ao supermercado.
Visitar supermercados durante as viagens de férias sempre foi um hobby meu. Gosto de olhar os diferentes produtos, ver suas embalagens, olhar as frutas locais, prestar atenção nas pessoas. Recentemente li “Olhe as luzes, meu amor“, de Annie Ernaux, e meu interesse por este ambiente aparentemente inócuo se fortaleceu. No livro, Ernaux se debruça sobre o cotidiano de um hipermercado na França e relata o que enxerga nas entrelinhas dos corredores iluminados por luzes brancas.
Foi com esse espírito indagador que adentrei o Wegmans, rede de supermercados da costa leste dos Estados Unidos, naquela quinta-feira cinza.
A loja era um colosso, com corredores apertados, pé direito altíssimo, letras garrafais sinalizando as diferentes seções. Tudo naquele Wegmans no meio do nada era grande.
E bastava olhar mais de perto para perceber que aquele espaço não estava ali à toa. Cada corredor que se estendia até onde a vista é capaz de alcançar, abrigava fileiras e mais fileiras de produtos. E se havia algo de opressor naquele lugar, não era exatamente o tamanho —era o excesso, esse tanto de tudo.
Passei por uma parede inteira de confeitos desses de enrolar brigadeiro. Virei a esquina e dei de cara com um corredor dedicado às mais variadas marcas e tipos de leite. Logo ali ao lado, uma gôndola exclusiva de manteiga. Parei para observá-la, perplexa pela variedade de um item tão banal. E entre os formatos tradicionais em embalagens e tamanhos variados, havia uma seção inteira de, pasmem, esculturas de manteiga. Coelhos, ovelhas, gatos e toda sorte de mamíferos moldados em gordura. Curiosamente não avistei nenhuma vaca, talvez o animal mais apropriado para ser homenageado com uma escultura de um subproduto do seu leite.
Voltei para o carro com a minha modesta sacola contendo algumas frutas, um pacote de pão e um tablete de manteiga retangular. Me chamem de conservadora, mas eu prefiro minha manteiga com formato de manteiga.
No caminho de volta, observei as casas grandes daquele subúrbio de casas perfeitas e imaginei o tamanho das geladeiras daquelas cozinhas, mamutes capazes de abrigar um zoológico inteiro de manteiga. E pensei em todos os outros luxos disparatados espalhados pela cozinha, pelos quartos, pelo banheiro.
E aí eu lembrei que essa terra da escultura de manteiga é também a terra em que atendimento médico só existe para quem pode pagar, que remédios podem custar o preço de um carro e uma doença séria pode custar a sua casa.
Nenhum paradoxo poderia explicar melhor a brutalidade deste lugar onde tudo é possível, menos o que deveria ser básico.
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