Começo o ano motivado. Faço uma lista de tudo o que está atrasado e que posso resolver nos últimos dias de recesso, quando as festas e a preparação das festas já passaram e está na hora de se preparar para o ano inteiro que vem pela frente.
Entro em contato com a clínica na qual preciso agendar um exame. Sou atendido por um robô no WhatsApp. Informo meus dados pessoais, o exame que preciso, indico o dia disponível e o horário. Parece que deu certo. O robô confirma meu horário e agradece.
Mas ele volta. Agora quer que eu anexe o pedido médico no site. Escrevo uma mensagem de texto, mas ele não compreende. Quero falar com alguém, avisar que, como não enxergo, vou precisar de um tempo até encontrar um vizinho ou trabalhador da região que possa fazer a foto para mim. Mas ele é implacável: “Ainda não recebi a documentação”, ameaça. Claro, eu não enviei, mas não tenho a quem explicar. Ele cancela meu horário, que já era só para depois do Carnaval.
Situações semelhantes fazem parte da rotina de quem tem deficiência visual. São desafios de acessibilidade escondidos nos detalhes que nos deixam no quase lá e testam nossa autonomia e paciência.
Acontece com muita frequência no ambiente digital. Nele, as possibilidades de navegação em mares abertos são muito grandes para quem aprende a usar os leitores de tela para pessoas com deficiência visual que agora estão disponíveis em quase quaisquer celulares ou podem ser baixados gratuitamente em computadores. Por outro lado, ali estão muitos icebergs difíceis de contornar, mesmo para marinheiros experientes.
Um problema clássico são os sites e aplicativos de compra de ingresso. Dá para pessoas cegas pesquisarem toda a programação, escolher o show que se quer e o tipo de assento. Mas logo o usuário terá que enxergar as cadeiras disponíveis na tela de seu aparelho e clicar na desejada, ações impossíveis para quem não vê.
A saída é ligar para amigos e parentes até encontrar alguém que esteja disponível, pedir que ele faça todo o processo para seleção do evento e passar os dados do cartão para que feche a compra, antes que se esgotem os ingressos. Aliás, obrigado, Jô, o musical do Ray Charles foi ótimo, você deveria ir também.
Mas eu sinto aflorarem minhas emoções de forma mais intensa quando preencho um formulário online enorme e escuto ao final frases do tipo “Identifique todas as imagens com uma bicicleta”. Nem se fosse com caminhões eu conseguiria. Agora ao menos parte destes sites dão a opção de pedir um desafio de áudio para substituir a comprovação de que não somos robôs por meio de imagens. Sempre uma caixinha de surpresas. Quando damos o play, parte desses desafios é bastante compreensível. Outros, são palavras soltas em inglês com alguém falando como se estivesse com um ventilador mandando vento no microfone.
Problemas como esses também podem aparecer no dia a dia do trabalho, com relatórios ou apresentações impossíveis de serem compreendidos com nossos softwares, por exemplo. Muitas vezes, sabemos exatamente o que é preciso fazer, em que tabela, linha e coluna buscar uma informação, só não temos como realizar a tarefa sozinhos, pois os arquivos com os quais lidamos são inadequados para os softwares que nos permitem trabalhar. Nesse caso, explicar a colegas e chefes o que acontece é fundamental. Isso porque o risco é grande de que as falhas de acessibilidade de terceiros passem por preguiça ou despreparo nosso.
Para nós cegos, muitas vezes a questão não é se sabemos fazer algo online, mas sim se aquele site ou programa é acessível. Mudar isso dependerá de empresas considerarem que vão interagir com pessoas com deficiência e devem oferecer um canal adequado para isso.
As normas para o desenvolvimento de produtos e serviços digitais são consolidadas internacionalmente, nas Web Content Accessibility Guidelines (diretrizes de acessibilidade para conteúdo web), produzidas pelo Consórcio World Wide Web (W3C), principal organização responsável pela criação de normas e protocolos da internet com objetivo de favorecer sua expansão, internacionalização, segurança e acessibilidade.
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