As preguiças de hoje são bichos pequenos (com no máximo uns 10 kg) que quase nunca saem do alto das árvores onde vivem, mas uma nova análise indica que a jornada evolutiva delas começou no chão e com um porte relativamente avantajado, de pelo menos 70 kg.
A partir desse tamanho já considerável, o grupo teve uma trajetória de sucesso, diversificando-se e gerando linhagens consideradas gigantes (pesando 1 tonelada ou mais) três vezes de forma independente, além da adoção da vida arbórea por algumas espécies. O êxito evolutivo foi tão grande que o sumiço da maioria delas na Era do Gelo provavelmente só pode ser explicado pelo aparecimento de um novo superpredador: o Homo sapiens.
Os dados, um bocado contraintuitivos à primeira vista, estão em artigo publicado na última quinta-feira (22) no periódico especializado Science. O trabalho é assinado por uma equipe internacional que inclui dois pesquisadores brasileiros, Daniel Casali e Max Langer, da USP de Ribeirão Preto.
Em essência, o trabalho do grupo consistiu na montagem de uma grande árvore genealógica envolvendo quase 70 gêneros de preguiças. “Gênero” é um conjunto de seres vivos ligeiramente mais inclusivo que o representado por uma espécie. Os grandes felinos, como leões, tigres e onças, por exemplo, pertencem a espécies diferentes, mas são todos membros do gênero Panthera.
Levando em conta tanto diferenças anatômicas quanto genéticas (em alguns casos, graças também ao DNA obtido de preguiças existentes) e à idade de cada animal, Casali, Langer e seus colegas estimaram as relações de parentesco e as transformações pelas quais cada subgrupo de preguiças passou ao longo do tempo, entre 35 milhões de anos atrás e os tempos atuais.
Foi por volta de 35 milhões de anos antes do presente, com efeito, que o grupo das preguiças, designado tecnicamente como Folivora (“comedores de folhas”, em latim), apareceu pela primeira vez. Isso aconteceu na América do Sul, região que, na época, era um continente-ilha separado de todos os demais.
A fauna sul-americana, desenvolvendo-se nesse isolamento durante milhões de anos, contava então com uma série de grupos muito peculiares de mamíferos, entre os quais o grupo dos Xenarthra, que abrange tanto as preguiças quanto os tamanduás e os tatus.
E, de fato, faz sentido imaginar que a mãe de todas as preguiças seria um animal vagamente semelhante ao tamanduá-bandeira atual, ainda que maior e menos especializado em sua anatomia.
“Ou seja, não teria um focinho super longo nem as garras nos membros anteriores tão desenvolvidos, e teria dentes”, explicou Casali à Folha. Há uma incerteza bastante ampla quanto ao tamanho desse ancestral, numa faixa que vai dos 70 kg aos 350 kg (os tamanduás-bandeira não passam dos 50 kg).
“A dieta que estimamos para essa protopreguiça seria mais provavelmente herbívora seletiva, típica dos animais que se alimentam das folhas das árvores”, acrescenta ele. Mas o bicho teria suas patas firmemente estabelecidas no chão, e não nos troncos arbóreos.
Com o passar do tempo, os descendentes da matriarca das preguiças foram se diversificando, adquirindo alterações na anatomia e no tamanho de acordo com os estilos de vida que iam adotando. Muitos subgrupos mantiveram o estilo de vida terrestre, enquanto outros se tornaram semiarbóreos (passando parte do tempo no solo e outra parte nas árvores) ou arbóreos (sem descer para o chão nunca ou quase nunca). “Quanto mais arborícola, maior a tendência de ter os ossos longos dos membros mais delgados, leves e compridos, por exemplo”, diz Casali.
Nesse caso, mais uma vez, o estilo de vida dos tamanduás atuais ajuda a entender essas diferenças. O tamanduá-bandeira é 100% terrestre, enquanto o tamanduá-mirim (com seu simpático “colete” de pelos pretos) é semiarbóreo, e o pequeno tamanduaí, totalmente arbóreo.
Os dados revelam que o tamanho dos bichos tendeu a ficar relativamente estável até o período entre 17 milhões e 14 milhões de anos atrás, uma fase relativamente quente da história do planeta em que elas tenderam a ficar menores para aproveitar o aumento das florestas tropicais.
Depois disso, porém, o clima começou a esfriar, com o aumento da aridez e das áreas de vegetação aberta na América do Sul, o que favoreceu o surgimento de espécies cada vez maiores que colonizaram esses habitats, como o cerrado, os pampas e a Patagônia. As grandalhonas se mantiveram no topo também na América do Norte e Central quando o surgimento de uma ponte de terra conectou a América do Sul a essas regiões, por volta de 3 milhões de anos atrás.
Já o surgimento das preguiças pequenas e arbóreas atuais –pertencentes a dois gêneros diferentes, Bradypus e Choloepus– é relativamente misterioso. “Infelizmente, não temos nenhum registro fóssil para os gêneros atuais ou parentes próximos claramente identificáveis pela morfologia”, diz o pesquisador da USP.
Dados genéticos e anatômicos, porém, indicam que a divergência entre elas e as demais preguiças é muito antiga, tendo ocorrido no mínimo há 25 milhões de anos. “Já está bem claro para nós que ambas se tornaram superespecializadas para a vida suspensória de forma convergente”, afirma Casali –ou seja, apesar do estilo de vida similar, o parentesco entre elas é distante.
Após dezenas de milhões de anos de florescimento e diversificação mesmo com muitas mudanças climáticas de todo tipo, quase todas as preguiças, especialmente as de grande porte, desaparecem no mesmo momento em que os seres humanos chegam ao continente americano. Esse fato, somado a exemplos claros de abate dos animais por caçadores da nossa espécie –inclusive com a descoberta, no Brasil, de contas para colares feitas com ossinhos delas– indicam que a presença humana teve muito a ver com a extinção delas.