Afirmar que a comunicação de massa apodrece o cérebro transformou o termo “brain rot” (podridão cerebral) em expressão do ano de 2024, na escolha do dicionário Oxford. O culpado da vez é o consumo excessivo de futilidades e polêmicas nas redes sociais, mas a preocupação já tem quase dois séculos.
Quem usou essas palavras para expressão do conceito pela primeira vez foi o filósofo americano Henry David Thoreau, há 170 anos, no livro “Walden” (1854). Para Thoreau, se render ao senso comum dos jornais e das conversas de boteco, deixando a curiosidade adormecida, era, por definição, deixar o cérebro apodrecer, diz Eraldo Souza dos Santos, pesquisador da Universidade Cornell.
Esse mal, escreveu o filósofo americano, “prevalece de forma muito mais abrangente e fatal do que as pragas de batatas”.
Para Thoreau, tinham “cérebro podre” aqueles que seguiam modas, perseguiam lucros incessantemente ou conversavam sobre as últimas notícias, todos atos considerados irrefletidos. O filósofo criticava os jornais da época por disseminar futilidades e reprovava os que renunciavam aos livros, satisfeitos com o noticiário.
Uma crítica parecida da relação das pessoas com a mídia aparece no trabalho do jornalista Walter Lippmann, “Opinião Pública”, de 1922. Para ele, as massas se dobravam diante de moralismos da imprensa e vícios da publicidade.
O conceito de indústria cultural de Theodor Adorno segue o mesmo caminho na crítica ao rádio.
Para os pensadores, o grande risco das mídias de massa é que seus consumidores cedam ao conformismo e deixem de contestar injustiças.
O “cérebro podre”, contudo, ganhou dimensões planetárias por meio de publicações dos usuários autodenominados “cronicamente online”. Os primeiros registros da expressão no X (antigo Twitter) são de 2007 e ainda remontam a programas fúteis da televisão.
Em 2024, uso da expressão “brain rot” aumentou 230% em relação ao ano anterior, diz Oxford, para remeter à “suposta deterioração intelectual de uma pessoa”, fenômeno decorrente sobretudo do consumo excessivo de besteira na internet. Seriam exemplos disso os virais curtíssimos do TikTok.
O termo circula em português com as variantes “cérebro podre”, “meu cérebro apodreceu” ou “minha cabeça apodreceu” e ganhou tração sobretudo no último ano.
A “podridão cerebral” chegou inclusive ao voto do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, na quarta-feira (4), em uma defesa da moderação de conteúdo nas redes sociais. “Esse problema da baixa qualidade, do discurso de ódio, da violência, do bullying, isso não é só no Brasil.”
O termo viral foi reproduzido também em francês, alemão e outras línguas, reforçando que as tendências consagradas nas redes sociais são globais.
Mas, se podridão do cérebro se refere aos efeitos negativos da internet, a decadência recente de uma rede social mostrou que a falta desses fóruns nem sempre é positiva. O jornal Financial Times mostrou que professores, médicos, cientistas e economistas desistiram das comunidades que nutriram por anos por resistência ao que enxergaram como deterioração do X (ex-Twitter), sobretudo após o alinhamento do dono da rede social, Elon Musk, a Donald Trump.
Cerca de 60 mil contas foram desativadas por dia na semana seguinte à eleição do republicano, mostrou levantamento do site Similarweb. A tendência não se repetiu no Brasil durante o período, mas o bloqueio da rede social pelo STF durante o mês de setembro no Brasil fez alguns usuários migrarem definitivamente para o concorrente Bluesky.
Uma delas foi a cientista política Beatriz Rey, que se divide entre a USP e a Universidade de Lisboa. “Não tenho usado mais o X porque a maior parte de quem me seguia foi para o Bluesky, e, lá, o ambiente é bem menos tóxico e poluído”, disse. Ela, contudo, afirmou que sentia falta do diálogo com os pares da comunidade internacional.
A preocupação de evitar que as redes sociais e o entretenimento sejam vilanizados tem ganhado espaço em livros e artigos acadêmicos neste século 21, e também não escapou aos pensadores dos séculos anteriores. Thoreau não advogava que as pessoas parassem de ler jornais, diz Santos, de Cornell. Embora crítico aos veículos de imprensa, ele conta que os lia.
Dizia, porém, que era preciso ir também aos livros e autores do passado para separar o joio do trigo e não acreditar em qualquer coisa.
Para o criador do conceito de “cérebro podre”, o problema era querer se limitar aos bons costumes da época (o equivalente às dancinhas do TikTok) só para agradar. “Um ganso continua sendo um ganso, não importa como estiver vestido”, escreveu em “Walden”.
O sucesso contemporâneo da expressão “brain rot” reforça que ser crítico também rende likes. Talvez fosse previsível que um defensor da renúncia da fama e do dinheiro em nome da verdade virasse um viral.