“Ela não sabe o que é cansaço“, pensei enquanto ouvia atentamente o desabafo da mulher sentada à minha frente. Com peso na voz, ela me contava sobre o trabalho, sobre seu chefe intratável, sobre o projeto que está atrasado, sobre a gerente de seu time que pediu demissão porque resolveu que precisava de um ano sabático.
“Como se eu também não precisasse de um sabático!”, ela me dizia. “E se tudo isso não fosse suficiente, o mestrado ainda tá bombando. Acho que vou ter que pedir extensão do prazo para entrega. Olha, não tá fácil mesmo, amiga.”
Me segurei para não revirar os olhos e correr o risco de perder a amizade. Ao invés disso, me forcei a manter as feições congeladas no sorriso empático com o qual havia iniciado a conversa e segui balançando levemente a cabeça, como boa ouvinte compadecida da desgraça alheia.
Não é a primeira vez que sinto um misto de ódio e inveja profundos ao ouvir mulheres sem filhos alugarem meus ouvidos para chorar suas pitangas. E não sou só eu. Atire a primeira pedra a mãe que nunca teve vontade de sacudir aquela amiga cuja vida parece um grande episódio de “Sex and the City“, ao ouvi-la reclamar do seu dia a dia de trabalho que emenda no bar, que emenda no crossfit. “Ai, não tenho tempo pra nada!”, “Ai, tô tão exausta!”, “Ai, só queria uns dias de férias!”.
Guardo o rancor para destilá-lo livremente em terreno seguro, em companhia de outras mães igualmente rancorosas.
“Quase respondi: Tá cansada, amor? Então, dorme! Aproveita que não tem ninguém pra te acordar no meio da noite nem pular em cima de você às 6 da manhã.” Todas gargalharam comigo, soberbas, do alto de suas exaustões soberanas, compartilhando do mesmo desdém pelo pseudocansaço alheio.
Eis que semana passada, em frente à escola, engatei num bate papo com uma mãe que havia acabado de conhecer. Quando finalmente o portão se abriu, entramos no pátio e procuramos atentas por nossas crias em meio às crianças que transbordavam das salas de aula. Cruzamos olhares novamente na saída, já em posse da prole. Eu com meus dois. Ela com três. Nos despedimos e ela desferiu o golpe sem dó.
“Ah que saudade de ter só dois, a vida era tão mais fácil.”
Caminhei pela rua fria em silêncio, com uma criança de cada lado, tentando me recuperar do tapa na cara que a vida havia acabado de me dar. E na sacudida que os tais tapas metafóricos invariavelmente proporcionam, lembrei de todas as versões exaustas de mim mesma que vieram antes dessa que perambulava humilhada para casa. A moral da história clara como a luz do poste que iluminava o caminho: a minha exaustão não era maior do que a de nenhuma delas, nem é menor do que a da mãe na porta da escola e seu grau elevado de maternidade per capita.
Ao abrir a porta de casa, pedi que minha filha tirasse seus sapatos e os guardasse no armário. Ao que ela me respondeu com lágrimas nos olhos: “Mas mamãe, eu tô muito cansada!”.
Contive o riso e respondi com verdadeira empatia.
“Eu sei, filha. Ser criança também cansa.”
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