O amplamente contestado estudo que popularizou a ideia de uso da hidroxicloroquina contra a Covid foi “despublicado” na última terça-feira (17). A editora Elsevier, responsável pelo periódico no qual a pesquisa foi publicada, conduziu uma investigação e apontou que retratação está relacionada a questões éticas e a possíveis falhas no método científico.
Ainda em 2020, ano da publicação do estudo, a Isac (International Society of Antimicrobial Chemotherapy), uma das proprietárias do periódico onde a pesquisa foi publicada, afirmou que o artigo não “atendia aos padrões esperados, especialmente pela falta de explicações dos critérios de inclusão e triagem de pacientes”.
A Elsevier lista agora, no fim de 2024, uma série de fatores que levaram à retratação do artigo, que há anos era refutado por diversos pesquisadores.
Três dos autores da pesquisa procuraram a editora levantando preocupações sobre a metodologia, conclusões da pesquisa, e a apresentação de interpretação de seus resultados. Dessa forma, Johan Courjon, Valérie Giordanengo, e Stéphane Honoré pediram a retirada de seus nomes do artigo, que havia sido publicado no International Journal of Antimicrobial Agents.
Giordanengo declarou à Elsevier possíveis questões relacionadas ao testes PCR aplicados. Segundo a pesquisadores, os PCR feitos em Nice teriam sido interpretados de acordo com as recomendações do centro de referência nacional. Mas os feitos em Marselha poderiam não ter utilizado a mesma técnica ou não terem sido interpretado segundo as recomendações, o que “na opinião dela, teria resultado em um viés na análise dos dados”.
Uma das questões éticas levantados diz respeito ao momento em que os pacientes foram recrutados para a pesquisa. A investigação não conseguiu confirmar se o recrutamento ocorreu antes da aprovação ética ser obtida. De forma geral, pesquisas são submetidas a um comitê de ética antes de terem início.
As datas de aprovações éticas vieram em 5 e 6 de março. O estudo diz que o recrutamento de pacientes começou no “no início de março”. Um dos autores da pesquisa, Philippe Brouqui, disse que o início do recrutamento ocorreu em 6 de março.
Porém, a investigação não conseguiu estabelecer se teria sido possível concluir a análise de dados de todos os pacientes no espaço de tempo de 6 de março a 20 de março, data em que o estudo foi submetido à revista International Journal of Antimicrobial Agents.
De acordo com o aviso de despublicação, também não foi possível determinar se os pacientes passaram a fazer parte do estudo no momento da entrada no hospital ou se eles já estariam hospitalizados por algum tempo antes do começo da pesquisa.
Também não foi possível determinar se havia preferência de tratamento entre o grupo de pacientes e o grupo controle.
A nota de retratação também afirma que não foi possível determinar se os pacientes presentes no estudo deram consentimento para uso de azitromicina. Segundo a investigação, há motivos razoáveis para afirmar que azitromicina não era considerada um tratamento padrão na época do estudo.
Um dos autores, Brouqui, afirmou que o uso de azitromicina era destinado para tratamento ou prevenção de superinfecções bacterianas —quando ocorre uma infecção oportunista após um tratamento inicial de outra infecção— de pneumonia viral e era padrão. Por esse motivo, diz o autor, não seria necessária autorização dos pacientes para uso.
A investigação mostra, porém, que os pacientes do grupo tido como controle não receberam azitromicina e que, no momento em que o estudo foi feito, a droga não um agente lógico para profilaxia de primeira linha.
“Esses pontos sugerem que a azitromicina não teria sido uma prática padrão no sul da França na época em que o estudo foi realizado e seu uso exigiria consentimento informado”, diz a nota de despublicação.
A editora afirma ter buscado, sem sucesso, contato com o autor-correspondente da pesquisa, Didier Raoult, o qual teve diversos outros estudos retratados, por questões éticas, desde a pandemia. Antes com prestígio na comunidade científica, Raoult foi suspenso, este ano, do exercício da medicina. O IHU (Institut Hospitalo-Universitaire Méditerranée Infection), que era dirigido por Raoult até 2022, também tem sido alvo de questionamentos e investigações relacionados a estudos científicos conduzidos no local nos últimos anos.
Outros autores procurados pela editora enviaram respostas e não concordam com a despublicação do estudo.
Histórico da Pesquisa e seu impacto político
Com uma amostra reduzida a 36 pacientes franceses que haviam obtido diagnóstico de Covid, o estudo, publicado ainda em 2020, concluiu que o tratamento com hidroxicloroquina “estava significativamente associado à redução/desaparecimento da carga viral em pacientes com Covid” e que o efeito era reforçado pela azitromicina.
A pesquisa avaliou somente a carga viral dos pacientes, não seu resultado clínico, como febre e oxigenação. O efeito positivo da substância foi identificado em 20 pacientes, mas o estudo não fez comparação com pacientes que receberam placebo. Além disso, seis voluntários que tiveram piora (um deles morreu) foram excluídos do estudo.
Estudos maiores, de padrão-ouro, feitos ainda durante a pandemia, não observaram benefício no uso da cloroquina contra a Covid.
A cloroquina e a hidroxicloroquina foram amplamente defendidas pelo governo Jair Bolsonaro como um tratamento para Covid durante a pandemia.
Pesquisas padrão-ouro, no entanto, chegaram à conclusão que as substâncias não têm efeito benéfico contra a Covid. Nesse tipo de estudo, os pacientes são divididos aleatoriamente em dois grupos, um que tomará a medicação e outro que tomará placebo. Para evitar viés, médicos e pacientes não sabem o que estão receitando ou tomando.
Ainda em maio de 2020, um estudo feito com dados de 96 mil pessoas internadas com Covid em 671 hospitais de seis continentes indicou que quem tomou hidroxicloroquina e cloroquina tinha maior risco de arritmia e de morte do que os pacientes que não usaram esses medicamentos.