O barco Roberto dos Santos Vieira, da UEA (Universidade do Estado do Amazonas), realiza no momento a segunda campanha de monitoramento das águas do rio Negro. No próximo semestre voltará ao rio Madeira, onde a primeira expedição com a Universidade Harvard (Estados Unidos), em abril, coletou peixes com níveis altos de mercúrio.
São espécies não predadoras muito consumidas pela população, como branquinha, jaraqui e pacu, para as quais a legislação admite concentração de 0,5 miligrama por quilo (mg/kg). Os espécimes recolhidos na região de Humaitá, a 700 km de Manaus, continham até 16 mg/kg do metal pesado, 32 vezes mais que o permitido.
Para peixes predadores, como o tucunaré, os limites de tolerância são mais elevados, de 1 mg/kg. Espécies que se alimentam repetidamente de outros animais contaminados, como peixes menores, vão concentrando o metal em seus tecidos e se tornam ainda mais danosos para a saúde humana.
As análises de mercúrio foram realizadas em Harvard no laboratório de Elsie Sunderland, especialista no metal tóxico. Estudantes seus, a exemplo de Faiz Haque e Evan Routhier, participaram de campanhas de coleta da embarcação de pesquisa da UEA, como relatou em maio a agência Ambiental Media.
A metodologia do grupo de Sergio Duvoisin Junior na Central de Análises Químicas da Escola Superior de Tecnologia da UEA marca 84 pontos de medição no rio Negro. Um a cada 14 km, cobrindo o trecho rio acima que vai de Manaus, onde o Negro se junta ao Solimões para formar o Amazonas, até Santa Isabel do Rio Negro.
No rio Madeira, são 63 locais de coleta. Quando conseguir incluir o Solimões em seu ambicioso plano de monitorar todos os principais rios das bacias amazônica, o trabalho abrangeria nele mais de cem pontos de medição.
Duvoisin ouvia falar muito de contaminação no Madeira, com a presença de centenas de balsas do garimpo, mas duvidava que o problema afetasse todos os 1.425 km no Brasil do rio que nasce nos Andes. Hoje acredita que um quarto do corpo d’água esteja comprometido, como os 100 km abaixo de Humaitá onde já se detectaram níveis preocupantes de mercúrio.
O metal, entretanto, não é o único indicador da saúde dos rios. Barco e laboratórios da UEA estão equipados para monitorar até 163 parâmetros de qualidade de água, de turbidez a teor de oxigênio, coliformes, metais etc., embora o Plano Estadual de Recursos Hídricos do Amazonas preveja 30.
“É emocionante, do ponto de vista científico”, diz o químico de origem gaúcha que chegou à UEA em 2008. “Sei que temos uma coisa grande na mão.” Ele estima que seu grupo já percorreu um terço do caminho no projeto de monitorar todas as bacias.
Para isso, a UEA precisaria de mais três embarcações como o Roberto dos Santos Vieira, que tem 18 m de comprimento e quatro laboratórios. O pesquisador calcula em R$ 300 milhões, distribuídos por cinco anos, o custo para disseminar o monitoramento, algo crucial numa região em que rios são a principal fonte de água para beber, de segurança alimentar (proteína de pescado) e de transporte.
“O que são R$ 60 milhões anuais para o Fundo Amazônia?” —questiona Duvoisin. “Nada.” Ele conta que apresentou três vezes o projeto para o BNDES e colheu três negativas, sob alegação de que o programa estaria fora do escopo do fundo administrado pelo banco estatal.
O próprio barco de pesquisa só navega hoje após um imbróglio com final feliz. Começou com multa ambiental milionária do governo amazonense à empresa Atem, distribuidora de derivados de petróleo. Em busca de projetos para investir o valor da autuação, a secretaria estadual de Meio Ambiente topou com a proposta da UEA de monitorar os igarapés de Manaus e os rios da amazônia.
A Atem acabou construindo a embarcação em seu próprio estaleiro e o equipou conforme especificações do grupo de pesquisa. Mas o Roberto dos Santos Vieira ficou ancorado, imóvel, por quatro anos.
Houve mudança de governo, e a nova direção do Ipam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) tinha outros planos para o barco, como excursões políticas ao interior. O Ministério Público Estadual entrou na pendenga jurídica, e terminou prevalecendo a destinação original prevista no cumprimento da multa.
A parceria com Harvard surgiu por intermédio de outro forasteiro, o paulista Rodrigo Souza, especialista em poluição do ar que chegou à UEA no mesmo concurso que aprovou Duvoisin. Souza estabeleceu contato em 2008 com Scot Martin, professor de química ambiental da universidade norte-americana.
Eles passaram a trabalhar juntos, mais estreitamente, por volta de 2012. Apoiados pelo programa Ciência sem Fronteiras, de Dilma Rousseff, pesquisaram a poluição do ar em Manaus com drones para coletar amostras.
Dez anos antes, Martin já tinha trabalhado com monitoramento de águas. Estender a colaboração para incluir o projeto de Duvoisin, assim, foi um desenvolvimento natural. Martin trouxe a colega Sunderland para a parceria, encorpando o braço de pesquisa com mercúrio.
A especialista de Harvard receberá uma estudante da UEA em seu laboratório de Cambridge, Massachusetts. A ideia é capacitar a equipe de Manaus com as técnicas de extração e medição de mercúrio.
Referindo-se a autoridades e cientistas de outras partes do Brasil, Duvoisin se queixa do descaso com a região Norte: “Hoje as soluções para a Amazônia vêm de fora. Acham que a gente não tem capacidade. Pessoas daqui não são ouvidas em Brasília”.
Ele exemplifica a importância do conhecimento local com a adaptação de metodologia de monitoramento que vêm fazendo para os tipos de água nos rios amazônicos. O Negro, por exemplo, tem muita acidez natural, em níveis que noutras partes do país seriam considerados indicativos de má qualidade.
“Diziam [em Brasília] que não tínhamos condições [de fazer o monitoramento]. Vou provar que temos.”
O repórter viajou a convite do Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos (DRCLAS) da Universidade Harvard