Há algumas décadas tivemos as primeiras evidências científicas de que a ação humana causava mudanças climáticas e viria a intensificá-las. As evidências viraram alertas para evitar um futuro trágico —e esse futuro virou presente. Por que não conseguimos mitigar a crise do clima?
Para a ecóloga colombiana Brigitte Baptiste, a questão é multifatorial e intimamente relacionada à diversidade, por diversos ângulos. Parte do problema é o fato de que as soluções devem ser específicas para as localidades onde são aplicadas, o que pode gerar conflitos entre o Norte e o Sul Global.
Tendo a diversidade em mente, Baptiste, primeira mulher trans a ser reitora em uma universidade na Colômbia (a Universidad EAN), defende a ecologia queer —uma teoria que considera a característica não linear dos ecossistemas. Em entrevista ao blog Ciência Fundamental, ela falou sobre essas e outras ideias.
Por que, mesmo sabendo das mudanças climáticas e das tragédias ambientais, não encontramos soluções efetivas?
Vejo que existe uma dificuldade que pode ser entendida como científica, mas que, na realidade, é um problema de comunicação. As soluções ecológicas são territorializadas, e é aí que aparecem particularidades: elas dependem dos valores e da construção das culturas em cada localidade. Há, também, uma dificuldade de entender as relações biológicas entre as espécies. Quando falamos de ecossistemas, não é fácil estabelecer os padrões que regulam o funcionamento do mundo —e isso marca as discussões (ou a dificuldade de mantê-las) entre o Norte e o Sul Global.
No que se refere ao meio ambiente, o que mudou em relação à sujeição do Sul Global ao Norte Global, e o que ainda precisa mudar?
Houve mudança nas regras do jogo do extrativismo, que ganhou algum nível de justiça ambiental, de equidade distributiva. Lentamente, as economias do norte e do sul vêm se misturando, redistribuindo o comércio e os serviços de acordo com interesses para além do propósito meramente extrativista. Na mineração e na agricultura há cada vez mais parâmetros de sustentabilidade, com normas para mitigar danos colaterais. Ainda assim, vemos muitos processos de extração sem compensação e casos de exploração social. E é isto que precisa mudar: questões de justiça ambiental e climática. Elas exigem a reorganização das atividades produtivas no mundo, seguindo critérios ecológicos —e estamos longe disso.
Há um caminho de aproximação entre os dois lados que seja menos prejudicial para todos?
Acredito ser possível uma outra relação entre os continentes. O colapso demográfico do planeta vai fazer com que isso ocorra. A China, por exemplo, precisará aceitar imigrantes se quiser sustentar suas populações envelhecidas, e esse acolhimento implica mudanças drásticas nas relações interculturais. Uma civilização ecológica global permitiria um sistema de comércio internacional muito mais equilibrado, transversal às culturas e às qualidades socioecológicas dos territórios.
Não existe, porém, um vínculo explícito entre as interações macroeconômicas globais e a sustentabilidade. “Sustentabilidade” virou uma palavra banal, mas é muito importante: é um indicador das trajetórias ecológicas dos territórios e permite identificar quando esses territórios estão inseridos de uma forma inadequada no contexto global.
A comunidade científica parece ter dificuldade em reconhecer que o Sul Global é capaz de propor soluções para o colapso ambiental. Por quê?
A comunidade científica reluta em reconhecer noções de bem-estar e modos de vida que não sejam sustentados por formas de conhecimento e valores inerentes a ela. Aparentemente, a noção de bem-estar associada à noção de conhecimento científico clássico não permite dissidências. Por isso os povos amazônicos são considerados pobres, por viverem com menos de um dólar ao dia ou apresentarem problemas decorrentes da desnutrição. Parâmetros de bem-estar do ocidente não podem ser universais. Se compreendêssemos a complexidade socioecológica do mundo, poderíamos distinguir trajetórias de (in)sustentabilidade sem precisar recorrer a indicadores autoritários, considerando distintas perspectivas de bem-estar.
O que é a ecologia/ambientalismo queer?
Ecologia é uma maneira de interpretar a evolução dos ecossistemas à medida que se estabelecem novas soluções para garantir a funcionalidade biológica dos territórios, e queer porque sempre implica processos que vão torcendo, que se desviam de uma projeção linear futura porque os ecossistemas não funcionam em linha reta. A ecologia queer chama a atenção para esse caráter torcido, que aos olhos humanos poderia parecer disfuncional, tortuoso —palavra que uso para definir essa classificação.
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Raika Moisés é doutora em comunicação e gestora do Programa de Jornalismo e Mídia do Instituto Serrapilheira.
O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, de apoio à ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.
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