O barulho do gelo contra o metal atraiu os habitantes do quarto de Pedro Augusto Melo, 41, para a janela. O que se viu através dela e, depois, em escalas enormes, no lado de fora do navio mostrava que a Antártida fora alcançada.
Mesmo mais de 30 dias na primeira expedição ao continente gelado, os olhos do biólogo e pesquisador da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) não se acostumam. Tudo parece sempre novidade.
A presença de Melo na expedição pela UFPE é, de fato, uma novidade. Trata-se do primeiro projeto do Programa Antártico Brasileiro coordenado por uma instituição do Nordeste.
Apesar de sua pesquisa se resolver de dentro do navio quebra-gelo, com lançamentos de redes e garrafas oceanográficas, Melo, em missão para auxiliar no trabalho de outro pesquisador, teve a oportunidade de colocar os pés em terra firme e gelada. Com um espaço reduzido e muito tempo juntos, o contato e as articulações entre pesquisadores de diferentes áreas —quase um Big Brother antártico— é um dos destaques da expedição, na visão do cientista.
Pedro Augusto Melo conta, na edição desta semana do Diário da Antártida, sobre sua busca por zooplâncton antárticos —talvez você já tenha ouvido falar dos krills— que, apesar de diminutos, possuem papel vital nos ecossistemas do planeta —e, assim como tudo no planeta, são afetadas pela crise do clima.
Estávamos no quarto, de madrugada, e começamos a sentir de leve o navio quebrando gelo. Já corremos para a janela para olhar e aí a euforia tomou conta.
O mar de gelo foi ficando cada vez mais fechado e a passagem cada vez mais difícil. Nós nos olhamos e corremos para fora. Ver aquilo de perto… a coisa era incrivelmente maior do que o que a gente conseguia ver pela janela.
Sentimos aquele gelo raspando no metal da embarcação e, lá na frente do navio, que é a parte que realmente quebra o gelo, escutamos aquela pancada.
Foi um momento de muita emoção. Chorei bastante. Lembrei do esforço até chegar a um momento como esse. A gente lembra da família, de quem tá aqui, de quem não está mais e que estaria vibrando com essa vivência. Foi um momento ‘ó, estou na Antártida’.
A minha participação na expedição é através do Projeto Mephysto. É o primeiro projeto do Programa Antártico Brasileiro coordenado pelo Nordeste, através da UFPE e do professor Moacyr Araujo. Nosso projeto tem esse papel bem importante de levar a Antártida para o Nordeste.
O projeto Mephysto busca avaliar os impactos das mudanças climáticas tanto na ocorrência de eventos extremos como na interação de processos físicos químicos e biológicos na península Antártica e no Atlântico Sudoeste.
A circum-navegação permite olhar a Antártida como um todo, em vez de apenas um setor. Eu e mais um pesquisador estamos trabalhando principalmente com a comunidade de menor tamanho. É o plâncton, são organismos microscópicos que vivem na coluna d’água.
A diversidade desse grupo é extremamente grande. Podemos dividir em dois subgrupos: a parte vegetal, o fitoplâncton, constituído por microalgas; e a parcela animal, que é zooplâncton, constituído por pequenos animais, entre os quais o krill, que é fundamental aqui no ecossistema antártico. O meu foco aqui é trabalhar justamente com essa parcela animal.
Estamos olhando para uma comunidade biológica que é extremamente relevante, porque ela está na base da teia trófica [cadeia alimentar]. Temos o fitoplâncton, que são os produtores primários. Eles têm um papel de, a partir dos nutrientes disponíveis na água, da energia da luz e do CO2 atmosférico, que é capturado, realizar fotossíntese. E nesse processo convertem tudo isso em energia, em biomassa —é a fase inicial do sequestro de carbono. Essa biomassa vai ser utilizada pelo nível trófico seguinte, que é justamente o zooplâncton.
Então, estamos falando de organismos que estão bem na base da teia trófica e que vivem nessa grande massa d’água e são bastante sensíveis a alterações. Qualquer alteração vai ter um reflexo sobre esses organismos, que estão na base, e consequentemente para toda a teia.
Na Antártida, temos uma teia trófica que é muito mais simples ou mais curta do que em outros ambientes. Por exemplo, o krill, um zooplâncton, um tipo de crustáceo, é uma espécie-chave que vai se alimentar de microalgas e já vai servir de alimento para organismos de maior porte —importante não só para baleias, como para peixes, aves marinhas, pinguins, até algumas espécies de foca. Ao entender o que acontece justamente nessa base, podemos prever e identificar como isso vai afetar os níveis superiores. É uma das coisas que a gente está tentando fazer aqui.
Por ser uma teia trófica muito curta, impactos são perceptíveis de maneira muito rápida. Os zooplânctons são organismos que têm um ciclo de vida muito curto e, inseridos nessa teia curta, na qual você tem um componente como sendo o principal fator, qualquer alteração desse componente pode ter consequências significativas.
Aqui o krill tem uma função chave, mas no nosso estudo não estamos olhando apenas para ele. Olhamos todas as comunidades. E aí vamos tentar avaliar comportamento, produtividade, abundância, distribuição das espécies que compõem as comunidades. Também variação de biomassa desses diferentes grupos, porque até o tamanho desses organismos é importante nessa teia trófica. Alguns organismos só podem, por exemplo, se alimentar de um espectro de tamanho. A abundância de um ou outro tamanho vai favorecer um ou outro grupo.
A minha linha de pesquisa se dá através de estações oceanográficas, que são realizadas todas dentro do navio. Eu particularmente uso um tipo de rede que é lançada em cada uma dessas estações. É uma rede —na verdade, são cinco redes acopladas em um único equipamento, em que eu consigo coletar amostras em diferentes camadas na coluna d’água a partir de um único lançamento— que tem uma malha muito fina, que permite coletar esses organismos, com tamanho de, talvez, um terço de um grão de arroz a cerca de 10 ou 15 milímetros.
No dia seguinte a ver o gelo sendo quebrado pelo navio, começamos as amostragens. Foi o primeiro arrasto com essa rede, chamada multinet. Apesar de serem seres microscópicos, quando passamos a rede, acumula e conseguimos ter um visual da amostra. Olharmos essa amostra e ver coisas que a gente só via através de livros… foi um momento muito muito marcante.
O planejamento das estações foi em função de conhecimento prévio em cada uma das áreas ou a falta de conhecimento, focando áreas em que se tem pouca informação e em áreas com características importantes que gostaríamos de estudar mais a fundo.
Além dessas coletas, tenho feito dois tipos de experimentos. Um de herbivoria, onde em incubações curtas de 24 horas a gente consegue avaliar o impacto dos herbívoros sobre as microalgas e entender esse fluxo de energia, de biomassa. E um outro de mortalidade não predatória. Um organismo do zooplâncton pode ser predado por algum organismo ou pode simplesmente, por alguma alteração do ambiente, morrer.
O Natal não é celebrado por todos aqui e tudo é muito limitado, a gente está num ambiente confinado. Foi um dia puxado de trabalho para todo mundo. Aqui o calendário não manda, quem manda é a navegação, é o clima. Trabalhamos dia 24 até 23h.
O que foi preparado para o dia não foi uma ceia tradicional. Tivemos o nosso jantar normal e próximo à meia-noite havia uma mesa com frios, chocolate, um vinho quente, com laranja e maçã, acho, tradição dos colegas russos —lembra nosso quentão. Foi um momento de descontração. Todos participaram, indianos, chineses, russos. Estou querendo saber o que vai ter no Ano-Novo.
E eu continuo não acostumado aqui. Cada dia é um dia belíssimo, é uma novidade.