No ano passado, a França inaugurou um escritório especializado no combate a crimes contra crianças e adolescentes como exploração sexual, assédio e cyberbullying.
Véronique Béchu, 50, que comanda o setor de estratégia do Escritório de Menores na Direção Nacional da Polícia Judiciária do país, trabalha há dez anos com investigação de casos de abuso online. No período, viu explosão de denúncias que ultrapassavam a capacidade de investigação.
Nesse cenário, começou a escrever o livro “Derrière l’Écran: Combattre l’Explosion de la Pédocriminalité en Ligne” (atrás da tela: combatendo a explosão dos crimes contra criança e adolescente online, editora Stock, sem tradução no Brasil), publicado em abril deste ano, para explicar a pais como predadores sexuais usam as redes para se aproximar de suas vítimas.
Em entrevista por Zoom, a autora chama a atenção para a conectividade precoce e alerta que dar um celular para crianças sem a devida orientação é como colocar um jovem na estrada sem carteira de habilitação.
Como está a situação na França em relação aos crimes online?
Na França, não fazemos distinção entre as violências sexuais cometidas online e offline, porque percebemos que em 90% dos casos em que iniciamos a investigação por um conteúdo de crime contra criança e adolescente detectado online, chegamos a fatos cometidos no círculo próximo, seja familiar, de amizade ou de confiança, ou seja, pessoas com autoridade sobre a criança.
O que podemos dizer é que foi estimado pela Comissão Independente sobre o Incesto e a Violência Sexual contra Crianças, em seu relatório de novembro de 2023, que por ano 160 mil crianças na França são vítimas de violências sexuais, online ou offline, tudo combinado. Isso significa uma criança a cada três minutos.
Há números sobre os casos online?
Online, na verdade, são principalmente as denúncias que recebemos das plataformas da internet que indicam ter detectado conteúdo de crimes. Na França, no ano passado, recebemos 318 mil denúncias.
Podemos dizer que essas denúncias são o aspecto online, mas incluem todas as infrações cometidas, ou seja, podem ir desde a consulta, detecção, difusão de imagens ou troca de conteúdos criminosos, até a denúncia de uma imagem que envolva uma criança sendo abusada sexualmente por um indivíduo.
A tendência é de aumento ou diminuição?
Online, a tendência é de aumento. Porque os casos são mais bem detectados pelas plataformas de internet e, inevitavelmente, há mais denúncias.
Mas também porque a internet e os novos meios de comunicação permitem que predadores sexuais entrem mais facilmente em contato com crianças e pratiquem atos como grooming [aliciamento], sextorsão [extorsão mediante ameaça de divulgar imagens íntimas]. Constatamos um aumento no nível das denúncias de casos de sextorsão contra menores na França entre os anos de 2022 e 2023 de 450%.
Passamos de alguns milhares de denúncias para 12 mil em 2023.
O que a motivou a escrever o livro?
Escrevi esse livro há dois anos, quando o escritório de menores ainda não existia, e o lancei em abril de 2024.
Fiz um levantamento do que está acontecendo com as crianças na França, porque percebemos que elas estão cada vez mais hiperconectadas e, portanto, sujeitas à predação sexual. Eu estava em uma unidade há dez anos, e nesse período tivemos um aumento de 12.000% nas denúncias, e não estávamos em condições de investigar todas, longe disso.
Então, me pareceu imperativo conscientizar pais, profissionais de proteção à infância, cidadãos comuns sobre o que está acontecendo na internet. As crianças estão se conectando muito jovens e cada vez mais têm acesso a dispositivos digitais ultraeficientes, sem aprendizado sobre o uso seguro.
E isso era algo que víamos diariamente e que as pessoas não percebiam, especialmente os pais que confiavam essas ferramentas a seus filhos. Eu quis mostrar os perigos, explicar o que estava acontecendo, mas, acima de tudo, fornecer ferramentas para que essas pessoas possam ajudar seus filhos caso algo aconteça e, de preferência, prevenir que se tornem vítimas.
Além disso, eu queria fazer as pessoas entenderem que o abusador não é um monstro que podemos reconhecer facilmente porque tem um rosto peculiar ou uma maneira diferente de se vestir ou uma morfologia particular e que se esconde em um canto e só aparece quando quer atacar uma criança, de jeito nenhum.
Eu queria que todos entendessem que o abusador é uma pessoa que encontramos diariamente, é muito frequentemente alguém próximo, uma pessoa a quem confiamos nossos filhos.
Um relatório da SaferNet Brasil revelou que mais de um milhão de usuários do Telegram compartilham imagens de abuso sexual infantil. Como essas plataformas contribuem para esse tipo de crime?Atualmente temos na França um caso em andamento com essa plataforma e, como está na Justiça, não tenho permissão para falar.
O que posso dizer é que as plataformas criptografadas de ponta a ponta são para onde os criminosos mais experientes se voltam para trocar com segurança suas perversões. É o mesmo para a dark web, por exemplo.
A única técnica de investigação que podemos usar é realizar o que chamamos de investigações sob pseudônimo, ou seja, nos passarmos por pedófilos para integrar esses sites da dark web ou esses grupos de aplicativos criptografados.
Vimos, nos últimos anos, no entanto, a migração de membros dessa comunidade criminosa da clear net [internet tradicional] para aplicativos móveis, de aplicativos para aplicativos criptografados e para a dark web.
O que os pais e cuidadores podem fazer para evitar esses perigos para as crianças?
A primeira coisa a fazer quando se confia a uma criança uma ferramenta que permita acessar a internet é, dependendo da idade, proibir o acesso a certas coisas.
E tentar ter um tempo de tela adequado à idade da criança, porque percebemos, na França, que as crianças estão extremamente conectadas. Isso é levado muito a sério, porque vemos os danos que pode causar.
Na verdade, quando se oferece um dispositivo digital a um menor, é imperativo que isso venha acompanhado de um aprendizado para o uso seguro.
Ou seja, muitas vezes fazemos o paralelo com os pais, explicando que, quando seu filho tiver 17 anos, você não o colocará atrás do volante de um carro sem ensiná-lo a dirigir e sem fazê-lo passar no teste. É o mesmo para uma ferramenta digital. Confiamos a ferramenta à criança, mas deve ser acompanhada de um aprendizado seguro. A educação digital funciona, mas é preciso que seja feita plenamente e para todos.
Raio-X
Véronique Béchu, 50
Autora do livro “Derrière l’Écran: Combattre l’Explosion de la Pédocriminalité en Ligne” (atrás da tela: combatendo a explosão dos crimes contra criança e adolescente online, editora Stock, sem tradução no Brasil), e chefe do setor de estratégia do Escritório de Menores na Direção Nacional da Polícia Judiciária da França. É especialista em crimes de pedofilia online e trabalha no combate à exploração sexual de menores há 23 anos.