A Defensoria Pública da União (DPU) tem ampliado sua participação em diversos processos no Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente em ações relacionadas a pautas identitárias. Essa expansão de poder é baseada em uma teoria de doutrinária, nascida em 2014, que coloca a DPU como custos vulnerabilis, ou seja, em uma posição de “fiscal de grupos vulneráveis”. A ampliação de poderes e a possível sobreposição de atribuições têm gerado debates sobre os limites institucionais das defensorias públicas.
Na prática, a atuação como custos vulnerabilis permite à DPU a participação nos processos com poder semelhantes aos das partes, já que o órgão estaria representando o grupo vulnerável que será impactado pelas decisões jurídicas que podem ser tomadas. Normalmente, assim como outros órgãos, a DPU costumava ocupar a posição de amicus curiae, os quais levam subsídios ao processo para ajudar a Corte na tomada de decisão. Diferentemente do amicus curiae, a tese acredita que a defensoria deva ter plena atuação na defesa dos interesses de grupos vulneráveis.
Um exemplo notório tem sido a participação da DPU, como custos vulnerabilis, na “ADPF das Favelas”, que interviu nas ações de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Nesse processo, a DPU determinou a criação de protocolos públicos de abordagem policial, que seria função do governo do Rio de Janeiro. Também solicitou a criação de uma Comissão Independente de Supervisão da Atividade Policial, função que já é exercida pelo Ministério Público. Em agosto deste ano, o ministro Edson Fachin, do STF, também concedeu a DPU a participação como custos vulnerabilis na ADPF 991, que discute medidas sobre a proteção de povos indígenas que vivem isoladamente. O mesmo fez o ministro Luís Roberto Barroso, também do STF, na ADPF 709, que também trata de indígenas, em outubro de 2023.
Para juristas, tese infla poderes da DPU e sobrepõe competências
“A tese do custos vulnerabilis é uma tese, não faz parte nem do papel constitucional e tampouco do papel originário da Defensoria. É uma criação doutrinária que confere poderes a um órgão que se pretende de Estado. Isso deveria ser tratado com muito cuidado pela legislação”, avalia Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidad Autónoma de Madrid.
Para Bruno Coletto, doutor em Direito pela UFRS, o aumento de atribuições de órgãos jurídicos, como é o caso das defensorias, é um reflexo de um movimento que está presente em todo o direito e tem provocado a sobreposição de competências. “As atribuições institucionais servem não apenas para organizar poderes e competências, mas – e especialmente – para limitá-los. A sobreposição de competências, eu diria, é uma agressão à ideia de separação de poderes, que é o cerne do constitucionalismo moderno”, avalia. Para ele, “o direito constitucional, que surgiu como limitação do poder, hoje é usado para justificar sua expansão”.
Um dos argumentos para justificar a intervenção das defensorias públicas como custos vulnerabilis é a dificuldade de grupos vulneráveis em conhecer e acessar seus direitos ou a falta de recursos econômicos para se habilitar em processos judiciais. Nesse contexto, as defensorias públicas – não só a da União, mas também as estaduais –atenuariam a invisibilidade desses grupos.
Moreira aponta que essa expansão de competências vai se confundindo com a de outros órgãos, como o do próprio Ministério Público. “Isso vai dando ao cidadão uma nefasta sensação: a de que tudo pode, a de qualquer um pode tudo, e a de que qualquer órgão tem mais poder e prerrogativas do que o legislador democraticamente eleito”, critica.
Envolvimento de instituições do direito em pautas ideológicas atrapalha debate político
Para os juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, o problema se agrava quando as defensorias públicas adotam uma atuação pautada pelo interesse de alguns grupos identitários. Danilo Martins, defensor público da União, considera que a atuação como custos vulnerabilis seria positiva se permanecesse restrita a proteger grupos vulneráveis como idosos, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiência, entre outros. “Essas pauta identitárias tomaram conta do cenário politico e jurídico, fazendo com que vejamos atuações da defensoria pública basicamente limitadas a essas pautas.”, ressalta. Para Martins, as defensorias têm se distanciado da própria essência, que é a defesa dos necessitados, para atender a agendas ideológicas de viés esquerdista.
Além da participação em processos judiciais, as defensorias públicas têm realizado diversas ações em prol da agenda identitária. Em julho deste ano, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro auxiliou em um mutirão para alterar os nome e gênero em documentos de crianças trans. Já a Defensoria Pública do Distrito Federal realizou, em janeiro, “1º mutirão de alistamento militar para homens trans e pessoas transmasculinas”. “O papel originário da Defensoria, que consistia simplesmente em prestar assistência jurídica a pessoas pobres – o que já era demasiado importante – , vai dando lugar a uma atuação que não tem como não ser politizada e, muitas vezes, ideologicamente orientada”, avalia Pedro Moreira.
Coletto complementa que o envolvimento da instituição para o avanço de pautas ideológicas prejudica um bom debate político. “Assim o direito vai substituindo o espaço da política e, consequentemente, deixamos de ter os debates e os acordos que são necessários à vida em comunidade. Quando resolvemos questões políticas em termos e em meios exclusivamente jurídicos, tais soluções não são sólidas e, em última medida, carecem de valor democrático na sociedade. Sua legitimidade é abalada”, esclarece.