A gravação era limpa, convidativa, e o apresentador (quem sabe o próprio fundador da tal igreja Lagoinha), cativante. Eu estava em Belo Horizonte numa viagem a trabalho e liguei protocolarmente a TV do quase hotel de viração para dar, numa emissora própria da igreja, com esse sujeito a discorrer agradavelmente sobre a corrida e seu emprego nos Evangelhos, especialmente nas epístolas do Apóstolo.
O apresentador não sonegava a fonte. Capítulos e versículos eram declinados, como quando Paulo se dirige aos Coríntios para muito explicitamente dizer que “todos os que correm no estádio” se submetem a “treinamento rigoroso”, mas ainda assim sua coroa “logo desvanece”.
Mas com os que creem, ensina Paulo, são outros quinhentos. “Nós”, diz o Apóstolo, “nos dedicamos para ganhar uma coroa que dura eternamente.”
Muitas outras passagens apareciam, tanto do Apóstolo quanto de João, para minha surpresa e, dir-se-ia mesmo, admiração. Mas à diferença da audiência do exegeta, para mim é a corrida não como metáfora que interessa, e nessa eu prefiro que Deus e seus avatares fiquem longe.
A frase acima saiu-me um tanto espetaculosa para a pequena irritação, ou melhor, para o pequeno enfado que, às vezes, vivo ao observar esse tipo de cena, especialmente durante provas de corrida. E, se me irritasse de verdade, teria o comportamento menos de um incréu do que, falemos o português correto, de um chato.
Espero não carregar, felizmente, essa chatice cavalar, ancestral, imune a exorcismos e reza forte. Digna do meu amigo Sócrates do Comezinho.
Meu ponto é que, ao evocar Deus, Cristo ou o Espírito Santo, o corredor está a tratar a corrida não como a salutar atividade física que é, mas a identificá-la com um sacrifício excepcional, um tributo terreno concedido ao Altíssimo sabe Ele a razão ou não. Um ex-voto em forma de esforço físico.
Isso pode ter algumas implicações: de cara, uma valorização hipertrofiada da prova, e, com isso, uma dedicação excessiva, às vezes num nível quase patológico, em que uma eventual desistência poderia ser vista como fraqueza de espírito ou mesmo falta de fé.
O velhíssimo “no pain, no gain” a trabalhar.
Para mim, a corrida é o primado do prazer. Que se façam os treinos intervalados, que se leve o esforço cardíaco a altos patamares de vez em quando, que se tente o sprint nos 200 metros que faltam até o pórtico de chegada da meia.
Que se tente terminar a maratona.
Mas que não se perca de vista aquilo que, repito, na minha opinião e, espero, na de vários outros adeptos, é a essência da corrida —o prazer.
Prazer que não inibe, veja só, outros ganhos da corrida: o condicionamento físico, especialmente cardíaco; a mobilidade excepcional, que permite que o corredor seja o seu próprio ônibus de turismo; a vontade de seguir correndo ao longo da semana; a sensação inevitável de bem-estar e felicidade, veja o enorme paradoxo, do “pós”.
Assuntos da fé são particulares e irredutíveis, claro, mas tento aqui uma última metida de colher: se toda corrida exige um sacrifício, uma entrega descomunal, como distinguir a final do campeonato do amistoso?
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.