Pela primeira vez a COP de biodiversidade —a conferência mundial da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o tema— pode mencionar explicitamente em sua resolução a importância das comunidades afrodescendentes, como quilombos, para a conservação da natureza e o desenvolvimento sustentável.
A Folha teve acesso à primeira versão do documento proposto para a conclusão da COP16, com data desta segunda-feira (28), elaborado pelo grupo de trabalho dedicado ao assunto na conferência que acontece em Cali, na Colômbia, até o 1º de novembro.
O documento prevê, além das menções no relatório final da COP, a criação de um programa de trabalho específico voltado aos povos indígenas e às comunidades locais, além de um órgão subsidiário permanente para esses temas.
A inclusão dos afrodescendentes é uma das principais bandeiras da Colômbia no evento e tem apoio do Brasil.
Inicialmente, os documentos oficiais da ONU mencionavam apenas comunidades locais em seu artigo “8j”. Após anos de discussões, os povos indígenas passaram a ser citados explicitamente nessa parte da resolução de biodiversidade das Nações Unidas.
Agora, os afrodescendentes também pleiteiam esse espaço, e o rascunho mostra que isso pode se efetivar —o documento ainda pode ser alterado, no entanto.
Uma das principais travas para a menção era a falta de apoio do Congo, um dos países que lideram essa discussão do lado africano.
Porém, a vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, anunciou nesta segunda que pela primeira vez a posição congolesa mudou, o que sinaliza que o debate pode ser destravado.
“O Congo inicialmente foi um do países que se opôs à proposta. Agora, houve uma flexibilidade e, antes de vir para cá, cheguei atrasada porque tive uma reunião com a ministra do Congo, na qual ela demonstrou seu apoio [à menção]”, afirmou Márquez.
A vice-presidente participava do lançamento do Centro de Inovação Baobab —organização voltada a estudos e promoção da justiça étnico-racial com foco em gênero e meio ambiente, que tem apoio da Fundação Ford.
Sob reserva, um negociador brasileiro confirmou a mudança de posição do Congo e que seria inédita tal citação aos afrodescendentes.
O documento ainda é vago e repleto de termos genéricos e destacados entre colchetes —o que aponta os trechos ainda não consensuados entre as partes, que ainda serão tema de debate.
No total, são sugeridos cinco parágrafos sobre o tema, mais da metade deles sinalizados dessa forma.
Contudo, pelo menos duas menções ao termo “afrodescendentes” não estão grifadas, o que sinaliza que o debate pela inclusão desta palavra pode, de fato, avançar.
Em linhas gerais, o documento aponta que os países devem promover e incentivar o reconhecimento do papel das comunidades afrodescendentes na preservação da biodiversidade e na produção sustentável.
O rascunho diz que as nações devem “reconhecer a contribuição das comunidades e pessoas afrodescendentes, incorporando o estilo de vida tradicional das comunidades locais, o seu conhecimento e seus territórios” para o marco global da biodiversidade —que é o equivalente ao Acordo de Paris no mundo das discussões climáticas.
O documento também convida as partes a dar apoio financeiro a essas práticas.
Segundo três pessoas envolvidas na conversa afirmaram à reportagem, a resistência de alguns países, inclusive africanos, era sobretudo por razões econômicas. Há, por exemplo, o receio de que aumente a disputa pelos já escassos recursos destinados à conservação da biodiversidade no mundo.
Também demonstraram essas preocupações representantes de povos indígenas ou de nações que atuem ao lado destes.
No rascunho ao qual a Folha teve acesso, há um trecho, grifado, que demonstra claramente esta preocupação.
Ele diz que essas ações devem acontecer “enquanto garantindo que nada em tal reconhecimento pode ser interpretado como diminuindo ou extinguindo os direitos dos povos indígenas”.
Ester Carneiro, assessora de clima e racismo ambiental da ONG Geledés – Instituto da Mulher Negra, diz esse debate é “histórico e significa respeitar, preservar e manter os conhecimentos, inovações e práticas dessa população em seus territórios”.
“Geledés, como outras organizações afrodescendentes, não vê a população afrodescendente como ‘comunidades locais’, presente na redação do artigo que delimita e, por isso, defende a ampliação da linguagem utilizada, para que as especificidades afrodescendentes sejam reconhecidas”, diz.