A curadora, mediadora e escritora Maria Carolina Casati, 42, dá um depoimento à Folha sobre sua conversão à umbanda após a morte do pai.
Eu estudava numa escola católica e fui seguindo todos os passos. Fui batizada duas vezes, inclusive.
A primeira foi na Igreja Católica Brasileira. Meu pai era desquitado, muito mais velho que minha mãe, e a Igreja Católica [Apostólica Romana] não queria me batizar, porque eles não eram casados. Mas depois fui batizada nela também. Aí fiz a primeira comunhão, crisma. Uma coisa que nunca mudou na minha vida é que eu sempre gostei das homilias [espécie de sermão na missa].
Eu era tipo assistente de catequista, mas eu tinha algumas ideias em relação à religião. Acabei convidada a não mais [servir na] turma de catequese. Acho que tinha uma coisa também da minha família. Algumas coisas da Igreja não faziam sentido para a nossa existência.
A gente achava muito esquisito essa coisa do pecado, da dor. É sempre sofrimento, é sempre muita culpa, ninguém celebra nada. Esse Jesus sempre retratado sofrendo, com muito sangue. Tem também o papel da mulher, que ou ela é uma mãe, uma santa, ou então ela é uma puta. Não tem outra opção.
Eu continuava participando do grupo, continuava indo para as missas. Só que eu ia com esses meus incômodos. E aí meu pai faleceu. Eu tinha 21 anos, foi no dia do meu aniversário. A minha mãe ficou muito, muito mal. Nós duas ficamos. Foi muito terrível pra gente.
A minha mãe começou a frequentar um centro espírita. Ela não foi acolhida de forma nenhuma ali. Era quase uma coisa assim, “ai, mas ele tá num lugar melhor”. Ninguém dava espaço pra ela sofrer, nem pra eu sofrer.
Minha mãe também sempre foi meio bruxona. Ela falava que sonhava com um lugar que tinha uma porta de vidro na zona leste. Ela foi lá, e era um terreiro de umbanda.
Pensei: bom, não vou deixar minha mãe ir num lugar que eu não conheço, ainda mais emocionalmente “craquelada” como ela está. Vou lá ver como é que é. Fui, e foi… Uau.
Sempre me botei nesse lugar de entender, estudar e tal. Não conhecia nada de umbanda, nada, nada, nada. E no primeiro dia em que a minha mãe foi, ela incorporou um caboclo. Aí eu falei, alguma coisa deve ser de verdade, porque eu conheço minha mãe e ela não tá fingindo. Eu já achei impressionante.
A mãe de santo tinha quase que uma homilia para explicar os trabalhos daquele dia. Já achei super massa. Ela falou assim: a gente hoje vai receber o seu Tranca-Ruas [um tipo de exu]. E eu fiquei tão impressionada que respondi: o próprio? Aí ela: o próprio.
O senhor Tranca-Ruas veio e me chamou pra conversar. Eu fico praticamente devota de Sr. Tranca-Ruas. Porque foi muito próximo, né?
Essa coisa de tudo ser muito distante no catolicismo, de ter que passar por muitos intermediários, e toda essa coisa desse sofrimento e dessa culpa, meio que foi resolvida na umbanda. Isso de você celebrar seu corpo, cantar, conversar com uma entidade que está muito próxima.
A gente começou a frequentar [o terreiro]. Minha fez o curso de mediunidade para poder, de fato, incorporar. E ela sempre cozinhou muito bem, virou a iabassê [que cuida dos alimentos sagrados da casa]. Minha mãe voltou muito a ser quem ela era por conta da umbanda.
Uma das coisas que a mãe de santo falava era que a única religião exatamente brasileira é a umbanda, porque ela foi criada aqui, com todas essas práticas brasileiras e que não necessariamente foi o que aconteceu com o candomblé, o vudu, o ifá ou outras de matriz africana.
Minha tia, que eu chamava de vó, era praticamente analfabeta e extremamente evangélica. Mas fazia todas as macumbas e simpatias. Ela lia a Bíblia e conhecia coisas de umbanda, tudo o que era banho.
Principalmente com as mulheres pretas, a gente sempre tem uma avó, uma tia, uma vizinha que fazia um negócio que, no final das contas, você vai acabar vendo que são práticas de umbanda. E que também são muito parecidas com algumas práticas católicas.
Vamos combinar que essa coisa do incenso, da vela… Tem um sincretismo. Dependendo da missa, tem lá aquele incensar, e a gente [umbandista] fala que vai fazer um defumador.
E agora eu vejo algumas coisas acontecendo. Uma é que parece que umbanda virou meio moda, né? Toda sexta-feira você usa branco, aí vai lá jogar flores pra Iemanjá.
Por outro lado, é tanta gente que fala que frequenta terreiro… Acho que as pessoas estão podendo conversar mais sobre isso. Antes era mais difícil alguém falar: ah, sou macumbeiro. Acho que as pessoas já falam com mais tranquilidade.
Mas tem uma elitização, de fato, da macumba. Dependendo do lugar, fica até interessante você dizer que você frequenta um terreiro.
Mas calma também, né? Usar turbante, alguns adereços, é simpático. Agora, todos os dias… Não sei se combina com o look do seu trabalho. Falar bastante de exu é legal em algum momento, mas o tempo todo você vai invocar Tranca-Ruas?
Então, eu acho que a gente ainda tá nesse momento em que é possível falar sobre nossa religião, que bom, mas tem essa apropriação de tudo no final das contas. E a gente tem que ir hackeando esse sistema pra continuar existindo pra além do exótico.
Entenda a série
A Folha questionou um evangélico, um católico, um muçulmano, uma umbandista e uma hare krishna sobre os motivos que os levaram a trocar de crença. As respostas, em formato de depoimento pessoal, serão publicadas a partir desta quinta (26), na série Convertidos.