Há 44 anos escrevendo sobre ciência (39 deles na Folha), deu para presenciar de tudo um pouco. Em 1986 não podia imaginar que veria a ayahuasca pesquisada como antidepressivo, 20% da amazônia devastada, o próprio genoma esmiuçado e a crise do clima batendo à porta –mas aconteceu.
O lado bom de se ocupar com esses temas é que a gente nunca para de se surpreender e de aprender. O último espanto veio ao encontrar no diretório de pesquisa clínicas clinicaltrials.gov um estudo sobre a eficácia de telhados frios para melhorar a saúde humana.
Sintoma de que perdemos o juízo ao deixar o aquecimento global sair do controle, a ponto de ver os dez anos mais quentes já registrados, todos eles, ocorrendo na última década. E com 2024 à frente, desbancando o recordista 2023.
O aumento da temperatura ocasiona eventos extremos como inundações e desbarrancamentos, mas o teste clínico destaca danos à saúde por excesso de calor. Na mira, doenças cardiovasculares, metabólicas ou endócrinas, gravidez e depressão, que podem complicar-se com exposição a altas temperaturas.
Uma medida simples de adaptação à mudança climática consiste em pintar os telhados com tintas capazes de refletir a maior parte da radiação solar, deixando de propagá-la para o interior das moradias. Alguns dos produtos no mercado anunciam redução na temperatura ambiente de até 9ºC.
Aditi Bunker, da Universidade de Heidelberg (Alemanha), disse à revista Nature que o estudo objetiva estabelecer uma relação causal entre adoção de telhados frios e melhoras de saúde. Realizado em quatro países, comparará domicílios que receberam a pintura com casas de tetos não modificados, distribuídos aleatoriamente em comunidades.
“Nosso teste em Burkina Fasso, na África Ocidental, incluiu 1.200 participantes de 600 domicílios em 25 vilas”, informou Bunker. “Monitoramos resultados ao longo de dois anos, focando a frequência cardíaca como o marcador primário, devido à sua sensibilidade à exposição ao calor.”
Além disso, serão feitas medidas de pressão arterial, temperatura corporal, glicemia, desidratação e estresse. Na esfera da saúde mental, haverá questionários sobre qualidade do sono e até violência de gênero.
O plano prevê 3.200 moradias das localidades Uagadugu, em Burkina Fasso, Ahmedabad, na Índia, Hermosillo, no México, e Alofi, em Niuê (país insular na Oceania). A conclusão foi marcada para janeiro de 2026.
“Os locais representam hotspots onde as pessoas vivenciam uma carga tripla de exposição ao calor, problemas crônicos de saúde e condições de moradia vulneráveis (favelas, assentamentos informais e moradias de nível socioeconômico inferior)”, diz a descrição do estudo na página clinicaltrials.gov.
A escolha desses lugares também garante diversidade em perfis climáticos, tipologia de moradia, nível de desenvolvimento socioeconômico, densidade populacional e taxas de urbanização.
A única coisa que não traz surpresa é saber que uma investigação dessas dificilmente seria conduzida no Brasil. Aqui como nos EUA, a extrema direita e o agronegócio creem que o aquecimento global é farsa montada por estrangeiros para nos negar o direito de destruir amazônia e cerrado e de lambuzar-nos em petróleo.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.