O ano era 1848. O jovem Phineas Gage trabalhava como supervisor na construção de uma ferrovia que passaria pela cidade de Cavendish, em Vermont, nos Estados Unidos, quando surgiu uma pedra no caminho —literalmente.
A equipe de trabalhadores precisava remover um paredão rochoso para instalar os trilhos e começou a preparar os explosivos. Alguns funcionários fizeram, então, buracos nas pedras, onde colocaram a pólvora.
Na sequência, Gage pegou uma barra de ferro —que tinha um metro de comprimento e cinco quilos— para socar e compactar o material explosivo que seria detonado pouco depois.
No entanto, uma faísca, que provavelmente foi gerada a partir do atrito entre os objetos, gerou um acidente que mudaria a história da medicina.
A explosão repentina propulsionou a tal barra de ferro para cima. O instrumento foi na direção do rosto de Gage, perfurou a bochecha esquerda, destruiu o olho, rasgou o cérebro e saiu pelo topo do crânio dele.
Entre as mudanças aparentes, Gage perdeu o olho esquerdo e, apesar de ter tido a barra removida do cérebro pelos médicos, passou a levá-la a tiracolo para qualquer lugar que fosse, como uma espécie de ‘amuleto’.
Mas a vítima do acidente sofreu uma alteração um tanto mais subliminar: na personalidade.
Amigos e familiares não conseguiam mais reconhecê-lo. Antes do acidente, Gage era considerado uma pessoa organizada, que obedecia aquilo que estava planejado e cumpria sua palavra. Após o ocorrido, ele mudava de ideia a toda hora e raramente fazia o que era estabelecido.
Além de ter desenvolvido um inusitado interesse por animais de estimação e um forte apego a certos objetos, o antes educado e cortês Gage se transformou em alguém grosseiro e desbocado.
O caso, que ganhou repercussão internacional, gerou muitos debates e fomentou ideias sobre o papel do cérebro na construção da personalidade de um indivíduo.
O acidente de Gage também deu as primeiras mostras palpáveis de como alterações em determinadas áreas da cabeça modificam a maneira como alguém se comporta —e ajudaram a entender a origem de certos transtornos mentais, como a psicopatia.
E, passados mais de 170 anos desse episódio peculiar, cientistas conhecem um pouco melhor o que acontece no cérebro de um psicopata. Confira a seguir o que já se sabe sobre o assunto.
Por dentro do cérebro psicopata
Todos os especialistas consultados pela BBC News Brasil apontaram para uma estrutura do cérebro como o possível epicentro da psicopatia.
Falamos aqui da amígdala, uma pequena “bolinha” que faz parte do sistema límbico e fica bem no centro desse órgão [não deve ser confundida com as amígdalas palatinas que se localizam ao fundo da boca].
“As mais proeminentes teorias deste campo apontam que a amígdala, responsável por processar as informações sobre ameaças, apresenta disfunções entre acometidos por esse transtorno. Essa área cerebral parece ser menos ativa neles”, observa o pesquisador Luke Hyde, professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
“É como se esses indivíduos não percebessem perigos ou ameaças, ou simplesmente não se incomodassem com isso”, complementa ele, em entrevista à BBC News Brasil.
O neurocientista Kent Kiehl, professor da Universidade do Novo México, também nos EUA, explica que nos estudos publicados sobre o assunto, a amígdala de psicopatas geralmente apresentou um tamanho reduzido em relação à média da população.
“Quanto mais traços psicopáticos uma pessoa possui, menor costuma ser a amígdala dela”, detalha ele.
Na prática, essa diferença no sistema de processamento de certas emoções modifica a forma como os psicopatas interagem com o mundo e tomam decisões morais.
“Além de estruturas como a amígdala serem menores e menos responsivas aos sistemas de ameaça e punição, essas pessoas reagem de um modo diferente aos medos dos outros que estão ao redor”, diz a psicóloga Abigail Marsh, professora de neurociência da Universidade Georgetown, nos EUA.
“Os psicopatas não entendem, não reconhecem e não reagem às emoções alheias”, complementa ela à BBC News Brasil.
O pesquisador James Blair, professor de Psiquiatria Translacional da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, usa como exemplo a reação costumeira que a grande maioria das pessoas têm quando veem um indivíduo aos prantos.
“Nós temos sistemas cerebrais específicos que nos fazem parar, analisar a situação e, se possível, oferecer algum tipo de suporte. Caso o motivo do choro seja você mesmo, por causa de um comportamento agressivo, a tendência é nos acalmarmos para acolher esse sujeito”, raciocina ele.
Esse processo todo não acontece no cérebro de um psicopata —por conta das tais disfunções na amígdala e possivelmente em outras estruturas cerebrais, sobre as quais falaremos adiante, o paciente com esse transtorno não reconhece esse medo alheio e não modifica a sua ação.
Outras instâncias afetadas
Os pesquisadores também citam uma segunda região da cabeça que parece ser diferente entre quem tem traços de psicopatia.
“É possível que o córtex orbitofrontal também tenha alguma importância nesse contexto”, aponta Hyde.
Esse pedaço do cérebro fica logo atrás dos olhos.
“Essa é uma área que faz o controle dos nossos impulsos”, diz o especialista.
Aliás, no caso de Phineas Gage citado no início da reportagem, uma das estruturas cerebrais afetadas pela barra de ferro parece ter sido justamente o córtex orbitofrontal.
Após o acidente, o supervisor da construção da ferrovia teve aquela mudança de personalidade e se tornou mais imprevisível.
Entre indivíduos diagnosticados com psicopatia, a impulsividade costuma ser uma das características mais presentes, junto com a falta de empatia e um certo charme superficial.
Essa tendência de agir de forma rápida e não planejada, portanto, poderia ser explicada por alguma disfunção no córtex orbitofrontal.
Kiehl acrescenta que os estudos feitos até agora não detectaram qualquer diferença em outras instâncias cerebrais de psicopatas.
“Não costumamos encontrar qualquer anormalidade no sistema visual, no córtex pré-frontal e nos setores responsáveis pelas memórias ou pela comunicação”, informa ele.
“Pessoas com esse transtorno raramente apresentam qualquer déficit cognitivo”, destaca o neurocientista.
Genética ou ambiente?
Mas como surgem essas alterações? Por que sujeitos com traços psicopatas apresentam uma amígdala ou um córtex orbitofrontal alterados?
Ainda não existem respostas definitivas para essas questões, mas os cientistas apostam num balanço entre fatores genéticos e a influência do ambiente.
“A psicopatia tem um componente hereditário”, pontua a psicóloga Arielle Baskin-Sommers, professora da Universidade Yale, nos EUA. Ou seja, há um fator genético importante aqui, embora não se conheça um único gene ou mutação no DNA que possa explicar o desenvolvimento do transtorno.
“Mas isso não significa que alguém está condenado a ser psicopata apenas por causa do risco genético. Certamente há uma influência do ambiente nesse processo”, pondera Baskin-Sommers.
Segundo a especialista, pessoas que apresentam os primeiros sinais de psicopatia na infância, como uma insensibilidade contumaz, podem ter esse comportamento reforçado a partir da forma como elas são criadas e educadas.
“Esses fatores de risco, como a genética, influenciam a forma de lidar com aquela criança que, por uma série de fenômenos sociais e emocionais, se vê diante de série de ciclos que resultam na psicopatia”, concorda Marsh, que também é cofundadora da Psychopathy Is, uma associação que fomenta pesquisas e campanhas sobre o transtorno.
Em outras palavras, um indivíduo pode apresentar um certo perfil genético que predispõe à psicopatia.
Ao longo dos primeiros anos de vida, ele demonstra os sinais iniciais disso, como a falta de empatia, a ausência de temor diante de ameaças ou uma agressividade desmedida.
Sem saber como lidar com esses comportamentos, os pais ou os cuidadores reagem de maneira inadequada, por meio de punições muito rígidas ou uma certa negligência, o que só reforça certos padrões de ação ou sentimentos na pessoa.
E todo esse processo, ao longo de muitos e muitos anos, pode reforçar aquelas alterações em estruturas do cérebro e futuramente desembocar na psicopatia. “Ou seja, crianças com risco genético [de psicopatia] podem ser mais difíceis de lidar. Daí elas recebem um cuidado mais duro ou menos caloroso. E isso só reforça a insensibilidade delas mesmas”, resume Hyde.
“Ninguém nasce psicopata. Mas alguns têm um risco muito maior de desenvolver esse transtorno”, conclui Marsh.
O texto foi publicado originalmente aqui.