Meu antidepressivo me dá fome. Funciona melhor do que anos de biotônico fontoura, xarope de alho ou maçã antes do almoço que minha mãe oferecia quando era criança. Isso não significa que eu ainda não fique confusa quando meu corpo dá sinais de que precisa de alimento. Sentir fome é uma sensação esquisita quando você passa anos usando de subterfúgios para enganar o apetite.
Estou reaprendendo a identificar os sinais, sem apelar para os extremos. Não mais como apenas quando a visão começa a ficar turva ou a cabeça começa a doer. Nem eu nem ninguém precisa fazer algo para merecer consumir algo além de uma xícara de café preto sem açúcar ou um pacote de balas sem açúcar no intervalo de 6 horas.
A ideia de “fazer por merecer a comida” me soa estranha, mas inescapável. Parece aquele tipo de conhecimento popular que foi tão repetido que você aceita sem questionar. Como colocar uma folha de louro no feijão, mesmo que você não goste do gosto.
Por anos eu quis fazer por merecer a comida me exercitando à exaustão e contando as calorias de tudo pra estar em saldo positivo numa conta alucinógena que fazia sentido apenas na minha cabeça. Depois de começar o tratamento para anorexia nervosa, (re)aprendi que pra merecer a comida basta estar com fome. Loucura, né?
Eu cresci num ambiente bastante católico, então eu costumo brincar que, de vez em quando, lembro que tenho livre arbítrio e encaro a culpa no espelho. “Essa noção de que coisas boas só acontecem mediante sofrimento é TÃO cristã”, costumo dizer, como se atestar em voz alta fizesse alguma diferença. Como se repetir a mesma ideia várias vezes me livrasse da culpa (cristã?) ao entender que eu estou com fome e só isso basta pra que eu me alimente. Sem suor nem lágrimas.
O aumento do meu apetite foi recebido com alegria pelo psiquiatra e pela minha família. “É sinal de que as coisas estão melhorando”, me dizem. A psicóloga me orienta quando eu tento fugir dos sinais fisiológicos com medo de que a fome se reflita em minha silhueta.
Penso em uma outra crendice popular que diz que sempre se engorda depois do casamento. Contornos machistas de que a mulher fique desleixada depois de estar fora do mercado afetivo-sexual à parte, a ideia, ao menos na minha família, sempre foi de que algumas felicidades podem se refletir na figura.
“O peso pode ser por ter tido muitos almoços de domingo com a família“, argumenta minha avó. Ela sorri quando eu como tudo que ela me serve no almoço. Nada que faça a minha avó sorrir desse jeito pode ser tão errado assim, penso.
“É só um número”, diz minha mãe, como se dissesse que o céu é azul. Ela nem tenta esconder a felicidade por ver que eu agora encho as roupas que antes me engoliam. O jeito que ela sorri lembra muito a minha avó. Me pergunto se dá para ver todas as pessoas que eu amo no meu próprio sorriso também.
Eu sorrio mais, também, com o antidepressivo. O remédio não curou todos os meus problemas, longe disso, mas me ajudou a ver as coisas com um pouco mais de clareza. Somado à terapia, me ajuda a entender que eu não preciso fazer necessariamente nada para ter direito a descanso, alimentação e lazer. Não tem nenhum grande banco de dados onde todas as calorias são computadas e os saldos negativos e positivos precisam ser equilibrados.
Quando minha avó oferece para servir mais um pedaço de lasanha, eu concordo. “Que bom que essa menina finalmente está comendo”, diz. Eu sorrio de volta. De fato, que bom.
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