José Alves, 48, convivia com os berros de sede dos animais que criava quando, há 15 anos, um projeto do Governo da Bahia abriu um poço equipado com cata-vento para bombear água na comunidade de Tanquinho, na cidade de Macururé (BA).
Isso mudou mais a vida dos moradores do que a chegada da energia elétrica, há cerca de cinco anos, segundo ele. “O gado tem um berro triste quando está com sede. Quando ele começa a rodear e berrar, você não suporta”, diz Alves.
Tanquinho não usufrui diretamente dos recursos do rio São Francisco, que fica a cerca de 70 km. Além disso, a comunidade demorou a se beneficiar das usinas hidrelétricas de Paulo Afonso (BA) e Petrolândia (PE), a 115 km e 159 km, respectivamente.
A qualidade de vida das famílias de Macururé e dos municípios vizinhos, que integram a primeira região de clima árido identificada no Brasil (antes semiárido), depende diretamente das políticas públicas de armazenamento de água.
O semiárido nordestino é o mais chuvoso do planeta, com média de 200 a 800 mm anuais. Com as mudanças climáticas, porém, as chuvas se concentram em períodos cada vez mais curtos e imprevisíveis, e os rios formados por elas secam rapidamente devido às altas temperaturas.
Apesar dos impactos visíveis da mudança climática no solo e na disponibilidade de água, os moradores afirmam que os dias eram piores quando não havia cisternas ou ao menos poços.
Depois da perfuração do primeiro poço com bomba eólica, diz José Alves, foram construídos na comunidade outros armazenamentos comunitários de água, como barragens e tanques de pedra. As iniciativas serviram para matar a sede dos animais e para o uso diário das famílias.
Há pouco mais de dez anos, a maioria das casas da região recebeu também uma cisterna de 16 mil litros, que coleta água da chuva por meio do telhado. Ela garante o suficiente para beber e cozinhar o ano inteiro —mesmo que às vezes seja necessário repor o volume com carro-pipa.
A construção de cisternas foi incorporada como política pública no país em 2003, após mobilização da sociedade civil. Nos últimos anos, porém, o investimento do governo federal nos reservatórios despencou, principalmente na gestão Jair Bolsonaro (PL), quando encolheu 96% em relação ao ano de 2014, pico do orçamento executado.
“Água é vida”, resume Alves, que é presidente da Associação de Pequenos Agricultores da Comunidade de Tanquinho.
Sua comunidade e outras de Macururé devem receber até o fim deste ano novas cisternas do Programa Uma Terra e Duas Águas, do Ministério do Desenvolvimento Social em parceria com a ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro) —uma das promessas do governo Lula (PT) durante a última campanha foi reativar os programas de cisternas.
Com o novo projeto, quem tem a chamada primeira água, para uso diário, receberá a segunda —uma cisterna de 52 mil litros para produzir alimentos mesmo em época de estiagem. As comunidades, até o momento, vivem da criação de carneiros, ovelhas, cabras e galinhas, uma vez que a escassez de água dificulta a agricultura.
O programa brasileiro foi apresentado nesta semana pela ASA na COP16 da desertificação, conferência das Nações Unidas sobre o tema que acontece em Riad, na Arábia Saudita.
Na comunidade do Caldeirão, o casal Maria Francisca de Andrade, 41, e José Raimundo de Andrade, 47, não consegue mais plantar nem o feijão nem o milho que os pais cultivavam, por causa da aridez crescente da terra.
Segundo José Raimundo, a maior dificuldade que enfrentam é comprar todos os alimentos que consomem. Eles fazem as compras em Paulo Afonso, a cerca de 180 km de onde moram, e esperam ganhar a nova cisterna para cultivar ao menos hortaliças e verduras.
Ainda assim, afirmam que a condição já foi pior. “Não tinha cisterna. A gente pegava água em umas cacimbas [escavação em local baixo e úmido ou em leito seco de rio]”, lembra Raimundo. “Para lavar roupa, a gente levava um saco de pano na cabeça até longe. Era bem difícil. Agora fica tudo mais pertinho”, diz Maria Francisca.
Quem construiu casa na comunidade entre o período de instalação da cisterna de 16 mil litros, há cerca de dez anos, e o novo projeto que acontece neste ano, entretanto, não usufrui de nenhuma delas.
A regra do novo programa é que, para ter a chamada segunda água, é necessário ter a primeira, o que exclui Cleidiane Conceição, 29, da iniciativa. “Depois que apareceu esse projeto [da primeira água] foi que a gente fez a casa aqui. Aí não apareceu mais nenhum”, diz a auxiliar de limpeza.
Cleidiane carrega água do tanque comunitário em um jegue para tomar banho e usar nos serviços de casa. Para beber, vai até a cisterna da casa da sogra e, também no jegue, leva a água até em casa. Ela ainda consegue cultivar algumas plantas, regando em dias espaçados e reaproveitando água da lavagem de roupas.
Rotina bem diferente da vivida pelo casal José Andrade Nascimento, 60, e Rosane do Nascimento Andrade, 50, que têm acesso a uma cisterna de 16 mil litros, uma cisterna de produção, uma barragem e um poço no terreno onde moram, na comunidade de Jurema, em Chorrochó (BA), a cerca de 30 km de Macururé.
Com a quantidade de água disponível, conseguem plantar tudo o que consomem e ainda vender o excedente diariamente —mesmo em épocas de estiagem.
“Está mais quente. O cabra sai daqui para ali e já tem vontade de voltar para casa. Mas essa cisterna que colocaram para nós foi boa demais”, diz.
Por causa da mudança climática, José precisou se adaptar a novas formas tanto de usar a água quanto de plantar. Ele trabalha com o chamado agroecossistema, em que adapta a roça, os animais e a horta de acordo com o clima.
O método foi apresentado pela ONG Agendha (Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecologia) em trocas de experiências com outros agricultores.
Logo após a chuva, José planta na barragem que armazena água em seu território. Quando ela seca, faz a horta na calçada da cisterna de produção. Quando o sol fica muito forte, passa a cultivar as hortaliças em uma estufa, que as protege do sol. E o esterco dos animais é usado como fertilizante.
Mas nem sempre é possível prever o próximo passo. No ano passado, choveu em outubro. Eles plantaram em novembro tentando aproveitar a água empoçada e imaginando que continuaria a chover, mas parou, e o solo secou rapidamente. “Perdemos a plantação todinha”, diz.
Além do acesso à água, que ainda está longe de chegar a todas as famílias, diz Ivi Aliana, membro da coordenação executiva da ASA, existe o desafio de preservar e recuperar as florestas da caatinga, no semiárido nordestino, para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
A situação ideal imaginada pela articulação que criou o termo “convivência com o semiárido”, em oposição à “luta contra seca”, é a de Israel da Cruz Oliveira, 54, presidente da Associação de Trabalhadores Rurais de Chorrochó, que planta em sistema de agrofloresta.
Com acesso a cisternas, barragem e poço, Israel preserva as plantas originárias do bioma que está desaparecendo na sua comunidade.
“A caatinga era assim antigamente”, diz, referindo-se à floresta densa com plantas altas e verdes presentes em sua roça. O clima “lá dentro”, afirma, parece outro —mais fresco— e não é tão difícil achar água quando se escava algum poço.
Essa qualidade de vida, defende Aliana, é uma mudança de paradigma no semiárido nordestino. “A gente deseja que tenha mais tecnologias no semiárido porque só garantindo as pessoas no campo, produzindo alimentos e protegendo a floresta, é que vamos lutar contra as drásticas mudanças climáticas”, diz.
O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.