Um conhecido cientista da China está tentando um retorno.
He Jiankui, 41, que ficou preso por três anos após afirmar ter criado os primeiros bebês geneticamente alterados do mundo, diz que permanece comprometido em voltar ao laboratório e em usar a edição de genes para curar doenças como o Alzheimer.
Ele não tem laboratório nem ligação a instituições acadêmicas. Tampouco pode viajar —ele diz que o governo chinês confiscou seu passaporte.
Mas, longe de se sentir desonrado após ser condenado por suas ações, He se apresenta como um mártir da controversa tecnologia, enquanto outros cientistas se preocupam com suas implicações éticas.
“Alguém precisa falar sobre isso”, disse He, em uma entrevista. “E eu sou essa pessoa.”
Muito sobre o experimento original de He e seu suposto retorno à ciência permanece obscuro. Ele admite que não tem um laboratório em Pequim —apesar de postar fotos no X que sugerem que tem— e sua relação com o governo chinês, que está determinado a desenvolver uma indústria de biotecnologia de ponta, é bem complicada.
O cientista pode ser simplesmente um pioneiro fazendo um retorno notável em busca das ambições de Pequim para a dominação científica ou um charlatão tentando fingir tudo isso.
“Há lacunas nessa história dele de retorno”, disse Abigail Coplin, especialista na interseção entre ciência e política na China no Vassar College (Estados Unidos). “Ele quer promover essa narrativa sobre si mesmo de que está de volta ao laboratório.”
“Não está claro se tudo isso não passa de uma fachada”, acrescentou ela.
He, que fez doutorado na Universidade Rice no Texas e pós-doutorado em Stanford, ganhou notoriedade em 2018 quando anunciou que havia alterado três embriões humanos para torná-los imunes ao HIV. Ele disse que usou a tecnologia Crispr para fazer a “edição de genes da linha germinal”, o que significa que as alterações poderiam ser transmitidas para os descendentes dos bebês.
Embora He tenha sido uma estrela em ascensão no mundo científico chinês —ele dirigia um laboratório e startups de sequenciamento genômico—, seu experimento resultou em imediata repreensão.
Muitos cientistas, entre os quais chineses, disseram que o experimento poderia levar a um mundo de bebês projetados, em que pais poderiam escolher as características de seus filhos. Outros se preocuparam que pais não foram adequadamente alertados das possíveis consequências para a saúde dos bebês.
O experimento, que He disse ter sido motivado pela vontade de “conquistar glória” para seu país, tornou-se um símbolo de como o esforço da China para se transformar rapidamente em uma superpotência científica poderia ter custos éticos.
Nos anos seguintes, Pequim agiu para responder a essas preocupações, lançando proibições em toda edição de genes em linha germinal de embriões humanos em pesquisa clínica para fins reprodutivos e expandindo os requisitos de revisão ética.
O Ministério da Ciência e Tecnologia da China não respondeu aos pedidos de entrevista para esta reportagem. A Embaixada Chinesa nos Estados Unidos se recusou a comentar.
Independentemente de a volta de He se revelar mais um truque de relações públicas do que um esforço de pesquisa genuíno, o sigilo em torno de seu trabalho destaca os desafios para a China ao tentar impulsionar descobertas científicas sem ultrapassar os limites éticos.
“É preciso encontrar o equilíbrio”, disse Ma Yonghui, pesquisadora em bioética na Universidade de Xiamen. “Precisamos incentivar o progresso científico e assegurar que essa pesquisa seja conduzida de forma responsável, ética e sustentável.”
“Ainda há um longo caminho a percorrer”, acrescentou ela.
Ambições científicas
O líder chinês Xi Jinping está em uma campanha de autossuficiência, visando transformar o país em uma potência tecnológica independente. Pequim investiu bilhões em biotecnologia, com a expectativa de gerar benefícios na área da saúde, na agricultura e até mesmo na tecnologia militar.
O investimento tem gerado resultados: a indústria de biotecnologia da China está causando impacto no exterior, com um número crescente de farmacêuticas chinesas buscando acordos de licenciamento no exterior e superando os medicamentos ocidentais.
No entanto, a biotecnologia também se tornou um ponto de atrito na relação entre os EUA e a China, e Washington tem como alvo a indústria chinesa com restrições de exportação e investimento.
Joy Y. Zhang, especialista em governança científica na Universidade de Kent, na Inglaterra, afirmou que essa tensão pode levar os cientistas a conduzir pesquisas mais arriscadas para vencer a competição científica entre os EUA e a China, prejudicando tentativas de criar diretrizes globais.
“O que me preocupa é que a tensão geopolítica vai influenciar a decisão de cada nação sobre suas estratégias científicas”, disse ela. “É só por meio desse tipo de diálogo e, de certa forma, transparência, que podemos começar a pensar sobre regulamentações futuras.”
He, por sua vez, não está disposto a ter um diálogo transparente.
Ele frequentemente fala com jornalistas internacionais e faz grandes declarações em inglês no X, o que é altamente incomum, dadas suas experiências passadas com a aplicação da lei chinesa. Ele inclui fotos de si mesmo usando um jaleco branco em um laboratório vazio ou na frente de uma estante exibindo a Bíblia e um livro de Xi.
“Quero ser o líder da edição de genes para o mundo inteiro”, ele postou no X em março. É vago, porém, sobre os detalhes.
He não divulgou nenhuma evidência sobre o estado atual dos três bebês envolvidos em seu experimento de 2018, afirmando apenas que estão saudáveis.
Também é evasivo sobre sua pesquisa atual. Depois de deixar a prisão, ele trabalhou por cinco meses na Universidade de Tecnologia de Wuchang, uma instituição privada em Wuhan, que não respondeu aos pedidos de entrevista. Ele disse que foi demitido depois de falar com jornalistas estrangeiros.
Mudou-se, então, para a ilha chinesa do sul de Hainan, mas saiu de lá em setembro depois de dizer que foi atacado em um estacionamento por um estranho.
O cientista havia afirmado operar um laboratório em Pequim, onde disse estar pesquisando soluções de edição de genes para a distrofia muscular de Duchenne e Alzheimer, motivado pelo fato de sua mãe ter a doença.
He se recusou a fornecer resultados detalhados desse trabalho e afirmou que não envolve pesquisa em embriões humanos.
Ele postou um plano de negócios em X, solicitando US$ 10 milhões em financiamento para estabelecer laboratórios em Pequim e Austin. Logo depois, retirou o documento do ar, dizendo ter atingido um valor suficiente de financiamento, contudo se recusou a dar o nome dos apoiadores.
E o laboratório do qual ele posta fotos no X? Um repórter do jornal The Washington Post visitou o complexo, afiliado à Universidade de Pequim, em março, e um segurança disse que He não estava mais autorizado a entrar no local. O cientista, então, admitiu que recentemente foi forçado a se mudar.
Ética
Se as declarações públicas são a tentativa de manifestar sua reabilitação, elas podem estar funcionando.
O bioeticista Benjamin Hurlbut, da Universidade Estadual do Arizona, disse que algumas partes da comunidade científica estão cada vez mais aceitando a quebra de limites genômicos, e o simples fato de He ser capaz de falar abertamente sobre seus planos indica que ele pode ter algum apoio do governo.
“Não posso dizer que ele está sendo encorajado a dizer as coisas que está dizendo, mas certamente não está sendo desencorajado.”
He disse que não recebe financiamento estatal.
Zhang, da Universidade de Kent, disse que as tentativas de retorno de He revelam que a China e a comunidade científica global não resolveram os dilemas éticos apresentados pela genômica.
“Se a China quiser se tornar a verdadeira potência científica global, ela também precisa liderar em ética. Uma mudança de mentalidade precisa acontecer.”
He não parece ter tido uma mudança de mentalidade. No mês passado, ele postou no X que “a ética está impedindo a inovação científica e o progresso”.
Comparando-se a Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica, ele disse que seu trabalho mudou o mundo de maneiras que ele não esperava.
Mas, quando perguntado se se arrependeria de liberar a edição de genes no mundo mais tarde na vida, assim como Oppenheimer fez com as armas nucleares, ele foi evasivo. “Responderei a essa pergunta talvez quando eu tiver 80 anos.”