A proposta do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), para a moderação de conteúdo nas redes sociais tende a favorecer o surgimento de uma indústria de indenizações contra as empresas de tecnologia no Brasil. O alerta surgiu entre especialistas no tema com base na conclusão de voto de Toffoli, proferido na semana passada, pela inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que imuniza as plataformas pelas postagens publicadas por seus usuários.
A norma diz que elas só respondem na Justiça por alguma publicação ofensiva caso descumpram uma ordem judicial de remoção desse conteúdo. Toffoli propôs que, em vez disso, possam ser responsabilizadas a partir do momento em que a pessoa ofendida notifique a rede social, diretamente, pedindo a retirada da postagem.
Fora isso, em caso de crimes e ilícitos mais graves, que afetem a coletividade, o ministro do STF defendeu que as redes sejam responsabilizadas, de forma imediata e independentemente de notificação direta ou ordem judicial. A ideia é obrigá-las a monitorar e remover qualquer conteúdo que possa ser enquadrado nas seguintes categorias:
- Crimes contra o Estado Democrático de Direito;
- Atos de terrorismo ou preparatórios;
- Crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou à automutilação;
- Crime de racismo;
- Qualquer espécie de violência contra crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis;
- Qualquer espécie de violência contra a mulher;
- Infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional;
- Tráfico de pessoas;
- Incitação ou ameaça de prática de atos de violência física ou sexual;
- Divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que levem à incitação à violência física, à ameaça contra a vida ou a atos de violência contra grupos ou membros de grupos socialmente vulneráveis; e
- Divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral.
Antes e durante o julgamento, diversos analistas alertaram para o risco de censura generalizada por parte das redes. Caso prevaleça o voto de Toffoli, a tendência é de que, para minimizar ao máximo o risco de serem punidas, as plataformas optem por retirar do ar qualquer conteúdo que envolva esses temas, mesmo que sejam lícitos e legítimos.
Textos, vídeos e podcasts que tratem, com algum grau de polêmica, de autoridades públicas, políticos, minorias, mulheres, saúde, “grupos socialmente vulneráveis” ou disputas eleitorais tendem a desaparecer nas redes. Mas os mesmos analistas alertam que, diante de remoções indevidas, as pessoas censuradas vão buscar a Justiça para recolocar seus conteúdos, processando as plataformas e também pedindo indenização pelo dano que sofreram.
“A transferência de responsabilidade para as plataformas fará com que a censura seja delegada do STF às plataformas. Uma espécie de terceirização do problema que eles tinham, porém, as insatisfações desaguarão na primeira instância e o problema voltará, num médio prazo, para o Judiciário”, diz André Marsiglia, advogado que atua no campo da liberdade de expressão.
Atualmente, a maior parte das ações contra o Facebook, por exemplo, não vem de pessoas que buscam remover conteúdos que as ofendem, mas de gente que teve postagens ou perfis suspensos pela rede social, por eventual descumprimento de seus termos de uso, e apontam uma censura indevida. No julgamento no STF, o advogado da empresa no Brasil, José Rollemberg Leite Neto, alertou para o risco de aumento desse tipo de judicialização caso o STF estabeleça, na decisão final, categorias abertas do que deve ser proibido.
“Conceitos abertos como “fake news“, desinformação, crimes contra a honra ou postagens ‘manifestamente ilegais’ incentivariam remoções excessivas. E levariam, aí sim, a uma judicialização massiva para assegurar a publicação de conteúdos com tais características”, disse o advogado na tribuna.
Indústria de indenizações pode ser efeito da censura massiva nas redes
Defensores de outras redes sociais já temem um efeito perverso: a criação de uma indústria de indenizações. Diante de uma massiva remoção de conteúdo, advogados passariam a incentivar centenas de censurados a pedir reparação por postagens retiradas do ar.
“Em nome de impedir uma judicialização de pessoas que se sentem afetadas por conteúdos postados online – e que precisam mesmo passar pelo crivo do Judiciário como dano à honra e à imagem, além de excessos sobre liberdade de expressão – a decisão do STF abre caminho para toda sorte de litigância predatória contra empresas de tecnologia. A prevalecer o voto do ministro Toffoli, as empresas respondem se deixarem no ar (e o Judiciário entender que deveriam ter tirado) e respondem se tirarem (e o Judiciário entender que a moderação foi indevida)”, diz Carlos Afonso Souza, doutor e professor da UERJ e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).
Uma tendência já apontada é de que as big techs enfrentem o mesmo tipo de situação na Justiça do que as companhias aéreas e telefônicas. As primeiras lidam diariamente com uma enxurrada de ações indenizatórias por atrasos em voos; as teles, por sua vez, com outra avalanche de processos por cobrança indevida em boleto duplicado, não pago e que leva o cliente à restrição de crédito. Essas ações podem ser apresentadas em juizados especiais, de pequenas causas, e comumente terminam numa conciliação, em que a empresa aceita reparar o cliente em valores pequenos, em torno de R$ 1 mil. Para ingressar com esse tipo de ação, não há custo nem é preciso advogado, daí a facilidade de obter indenizações.
Se esse fenômeno se repetir em relação às empresas de tecnologia, o caminho será montar uma estrutura muito maior de defesa para lidar com esses processos, que tendem a se multiplicar.
“O tom que o próprio STF adota no julgamento termina a favorecer uma visão contrária às empresas de tecnologia em julgamentos na primeira instância. Litigância contra empresas de tecnologia pode se tornar um negócio tão ou mais atrativo do que abrir uma empresa de tecnologia”, acrescenta Souza.
Marco Sabino, sócio de Mannrich Vasconcelos e professor de Processo Civil no IBMEC, aponta para o risco de abuso nessas ações. “A modificação da regra do escrutínio judicial pode elevar o risco de litigância predatória, com advogados oportunistas colhendo procurações e estimulando a conflituosidade, assoberbando ainda mais um Judiciário, que tem um acervo incrivelmente grande, um dos maiores do mundo. Os tribunais devem estar atentos a esse comportamento”, diz o advogado.
O problema, segundo os observadores do julgamento, é que essa litigância será decorrente de uma restrição generalizada à liberdade de expressão. “As redes terão de se preparar para enfrentar uma onda de processos e medidas extrajudiciais. Tenderão, também, a remover mais conteúdo do que o necessário, atuando de maneira mais restritiva”, afirma Sabino.
Para Caio Miachon Tenorio, sócio no escritório Lee, Brock & Camargo Advogados, mestre e doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, essa onda de judicialização não necessariamente resolverá o problema da desinformação nas redes.
“A judicialização tende a crescer, não só para pedidos supostamente não atendidos extrajudicialmente pelos provedores de aplicação, mas também pela modalidade de responsabilização baseada na teoria do risco, restabelecendo polêmicas e discordâncias em relação à conduta adotada pelas plataformas, que repercutirão na esfera social e não solucionarão o problema da desinformação e de outros conteúdos ilegais”, diz.
O julgamento sobre o Marco Civil da Internet será retomado nesta quarta-feira (11) com o voto do ministro Luiz Fux, relator de outra ação sobre a responsabilidade das redes pelo conteúdo postado por usuários. Depois, votam os outros nove ministros do STF. A tendência é que cada um proponha regras diferenciadas para a moderação de conteúdo, mas no mesmo sentido do que foi proposto por Toffoli.