Em Naples, na Flórida, a Sunlight Home oferece refúgio e um novo começo para mulheres grávidas à beira da falta de moradia. Também exige que peçam permissão para deixar a propriedade e que baixem no celular um aplicativo de rastreamento. Foi o que disseram algumas ex-residentes e é o que está definido nas regras do local.
Na Hannah’s Home of South Florida, perto de West Palm Beach, as mulheres precisam da aprovação de um pastor para ter um relacionamento romântico e são obrigadas a comparecer à oração matinal, de acordo com depoimentos de ex-residentes, funcionários e voluntários do serviço. Têm também que entregar seus cupons de alimentação para pagar mantimentos comunitários, prática que provavelmente viola a lei, segundo dois especialistas em assistência social do governo.
Em muitas partes da Flórida, onde os custos de moradia estão subindo e os legisladores restringiram o acesso ao aborto, mulheres grávidas, na maioria adolescentes, que precisam de um lugar seguro e estável para viver, acabam aceitando uma das poucas opções existentes: as casas de maternidade administradas por instituições de caridade.
Essas casas, muitas delas afiliadas a igrejas ou organizações cristãs sem fins lucrativos, frequentemente ajudam mulheres e adolescentes que fogem de abusos, saem de um lar adotivo ou deixam uma clínica de reabilitação de drogas.
Mas a Flórida permite que a maioria das casas opere sem obedecer às regulações estaduais ou sem passar por supervisão estadual. Um exame do “The New York Times” e do podcast investigativo e programa de rádio “Reveal” descobriu que muitas exigem que as moradoras concordem com condições rígidas que limitam suas comunicações, suas decisões financeiras e até mesmo seus movimentos.
As casas costumam informar as regras às mulheres antes que se mudem e às vezes as publicam online. É comum que existam códigos de conduta nos programas residenciais; mesmo assim, em entrevistas, mulheres que moravam em alguma casa de maternidade disseram que não tinham ideia de como essas regras são pesadas. “Percebi que a Sunlight Home era desumanizante, que nos tratava quase como se fôssemos criminosas, não como mães solteiras”, diz Kara Vanderhelm, 33, que morou na casa por cerca de oito meses e saiu em julho passado.
Em várias casas, as moradoras enfrentaram consequências graves pela violação das regras. Em alguns casos, os funcionários chamaram a polícia quando as mulheres questionaram sua autoridade ou saíram da propriedade sem permissão. Em outros, as mulheres contaram que foram expulsas sem aviso prévio.
As casas procuram manter a mãe e o bebê juntos. Muitas deixam que as gestantes, e ocasionalmente as mulheres com filhos, fiquem de graça para que possam economizar dinheiro e encontrar um lugar permanente para morar. Em geral, as mulheres são informadas da existência dos locais por intermédio de provedores de serviços sociais ou de centros de gravidez antiaborto e se mudam voluntariamente.
O “Times” e o “Reveal” identificaram, no total, 27 casas na Flórida. Examinaram 17 delas, visitando algumas instalações, revisando as regras internas publicadas, escrutinando centenas de páginas de relatórios policiais e entrevistando 48 moradoras atuais ou antigas, bem como funcionários e trabalhadores voluntários. Descobriram que as casas com programa religioso obrigatório e restrições a passeios e comunicações geralmente não são reguladas ou registradas por uma organização religiosa sem fins lucrativos. Muitos lares licenciados não têm essas regras, embora a regulamentação estadual não os proíba explicitamente de funcionar sem elas.
Alguns diretores de instituições com regras rígidas ratificaram que elas são necessárias para manter a ordem. Afirmaram que limitam o movimento das moradoras para mantê-las longe de usuários de drogas e de pessoas abusivas. A Associação de Agências Cristãs de Assistência à Criança da Flórida declarou que o objetivo das restrições em suas casas é “ajudar cada cliente a quebrar os ciclos de pobreza e vício para encontrar esperança e cura em Cristo”.
Em um comunicado, a Sunlight Home escreveu que as residentes saem regularmente da propriedade para entrevistas de emprego, trabalho e compromissos, mas que os funcionários “fornecem alguma responsabilidade para garantir sua segurança”.
Em uma declaração separada, a líder da Hannah’s Home, Karen Hilo, disse que as práticas de utilização de cupons de alimentação de sua casa não violam nenhuma lei e que suas outras regras estão em vigor para “restringir comportamentos e atitudes que podem prejudicar o sucesso individual e de todo o grupo”.
Outros líderes afirmaram que seu programa está melhorando a vida de mães e crianças. Alguns ajudaram as moradoras a obter benefícios como vale-creche e vale-refeição.
Especialistas em serviços sociais concordam que as casas de maternidade oferecem uma ajuda vital. Mas as inconsistências no cuidado e na supervisão são preocupantes, frisa Mike Carroll, ex-secretário do Departamento de Crianças e Famílias da Flórida que agora supervisiona uma rede de programas de serviços sociais, incluindo uma casa de maternidade licenciada que se apoia na fé. “Pode haver situações bastante abusivas”, acrescenta ele.
Rachel Hunt, 29, estava grávida de seis semanas, recém-saída de uma desintoxicação pelo uso de drogas e sem-teto desde o início de 2022. Funcionários do programa de tratamento que ela participou a ajudaram a encontrar a Hannah’s Home, que é registrada em uma organização cristã sem fins lucrativos.
No início, Hunt achou o local encantadora. Mas logo se sentiu como se estivesse sendo observada por um microscópio. Havia câmeras de segurança na sala de estar e na entrada, característica comum tanto nas casas regulamentadas quanto nas não regulamentadas.
Em entrevistas, dez ex-residentes, voluntários e funcionários descreveram como são as regras rígidas da instituição. No primeiro mês, o celular é proibido e não se permitem visitas. Oração matinal, terapia artística e aulas de nutrição são atividades obrigatórias.
Hunt diz que, apesar das restrições, a Hannah’s Home de certa forma mudou sua vida para melhor: ela encontrou um senso de comunidade e viveu lá durante meses depois do nascimento da filha, em 2022. Mas, segundo ela, muitas regras são excessivamente limitadoras. No ano passado, perdeu várias sessões de oração matinais e deixou sua mãe entrar na “área residencial privada” da casa, o que não era permitido. Logo depois, foi avisada de que quaisquer outras violações levariam à sua remoção do programa, como mostra a carta de advertência que recebeu.
Hunt relata que, depois de retornar tarde de uma viagem para fora do estado, em janeiro, ela e sua filha foram expulsas.
Muitas casas sem licença –embora não todas– impõem restrições semelhantes. Duas delas exigem abstinência sexual. Três fazem buscas aleatórias nos quartos e nos pertences pessoais. Pelo menos seis obrigam que se frequente a oração matinal, os serviços religiosos e o estudo bíblico, além de um programa cristão de 12 passos com atividades que, segundo alguns antigos moradores, se parece com doutrinação religiosa.
Restrições ao uso de celulares também são comuns. Os moradores do Inn Ministry, em Jacksonville, têm de deixar o telefone no andar de baixo durante a noite –regra instituída para evitar “conversas perturbadoras”, afirma a diretora, Judith Newberg.
De acordo com Jessica Behringer, 38, que saiu da Sunlight Home em abril, depois de três meses vivendo ali, as regras tornaram sua vida insuportável: “Todo mundo lá está sendo controlado.” Outras três residentes contaram que foram embora por motivos semelhantes no ano passado.