Nesta semana, os chefes de estado do Brics se reuniram em Kazan, capital da República do Tartaristão, recebidos pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin. Pela primeira vez o grupo se encontra oficialmente na sua nova configuração expandida, que incluiu Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã.
Depois da presidência russa, será a vez do Brasil que, em menos de 12 meses a partir de novembro, será também o anfitrião do G20 e da COP30. Para o governo brasileiro, essa ultramaratona diplomática é uma ocasião única de desempenhar um papel de liderança internacional.
O momento é particularmente decisivo para costurar agendas entre as mais cruciais para desenvolvimento do país: transformação digital justa, promoção da sustentabilidade e luta contra as desigualdades. É cada vez mais visível que estes assuntos são intimamente conectados.
A automatização por meio de inteligência artificial (IA) é um exemplo eloquente. Dependendo de como e para quem são construídos e regulados os sistemas de IA e as infraestruturas que os suportam, eles podem ser poderosos vetores de desenvolvimento e aumento de produtividade ou facilitar autoritarismo, desastres ambientais e concentração de poder.
Neste sentido, observar os desenvolvimentos que acontecem no âmbito do Brics se torna particularmente relevante para entender quais são as estratégias e as prioridades das lideranças do Sul Global e como podem impactar a elaboração de políticas nacionais e internacionais. Como revelam as pesquisas do projeto CyberBrics do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio, os trabalhos do Brics são um preditor bastante interessante das evoluções globais.
Ao longo da última década, a transformação digital começou a ocupar um lugar cada ano mais proeminente na agenda do grupo. Desde a Cúpula de 2013, que aconteceu somente algumas semanas depois das revelações de Edward Snowden, os países do bloco reafirmam seu compromisso com a cibersegurança e a soberania digital, que passaram a ser prioridades domésticas e internacionais pela maioria.
Vale a pena frisar que, para os países do Sul Global, basicamente nada mudou desde as revelações sobre os esquemas de espionagem maciça orquestrados pela NSA, que na época implicaram até a interceptação ilegal da então presidente Dilma, vários membros do governo e executivos brasileiros, entre outros.
Desde então, os membros do Brics destacam a relevância da cibersegurança e a necessidade de se definir uma estrutura regulatória universal sobre luta ao cibercrime, liderado pelas Nações Unidas. É importante frisar que, em agosto deste ano, essa visão intensamente apoiada pelo Brics ao longo de uma década se concretizou, não sem críticas e turbulências, na nova convenção sobre crime cibernético adotada por consenso pela ONU.
Esse talvez seja um dos maiores produtos da coordenação e atuação conjunta das lideranças do Brics no que diz respeito às políticas digitais, apesar das críticas que podem ser legitimamente levantadas sobre a Convenção —cujo escopo é tão amplo a ponto de poder facilitar vigilância e repressão. Porém, somente há cinco anos, pensar que o texto de uma Convenção sobre cibercrime proposto por países do Brics pudesse ser adotado pela ONU não era uma opção tomada a sério pela enorme maioria dos observadores.
Como muda o mundo. A corrida tecnológica para ser líder em IA e a crescente percepção de nossa falta de soberania digital, no meio de uma digitalização acelerada à qual a pandemia nos obrigou e num ambiente internacional extremamente tenso, de fato turbinaram o avanço do objetivo pelo qual o Brics foi criado.
Desde sua criação, o Brics almeja a construção de um uma ordem multipolar no qual as lideranças do Sul Global não tenham um papel exclusivamente passivo, mas se tornem atores ativos da governança e o desenvolvimento global.
Ao analisar os acontecimentos mais recentes parece que, para o bem ou para o mal, esta ordem multipolar esteja sendo estabelecida a pleno vapor.
Neste contexto, é extremamente relevante que ao considerar o papel da digitalização e da IA o grupo acabe de se comprometer pela primeira vez “à concepção de um framework global para a governança de dados, incluindo fluxos de dados transfronteiriços, para garantir a interoperabilidade de marcos regulatórios de dados a todos os níveis.”
As políticas digitais dos países do Brics já exercem uma relevante influencia internacional e o grupo tem a capacidade de promover a interoperabilidade legislativa em termos de governança de dados, como destaca a pesquisa do CyberBrics. Além disso, o Brics já criou um grupo de estudo sobre IA.
Em 2017, em tempos diplomaticamente muito mais descontraídos que hoje parecem uma época muito distante, o próprio Vladimir Putin comentava que “quem se tornar o líder [em IA] se tornará o governante do mundo.” O tom bastante assustador do aviso russo não foi desmentido pelas evoluções tecnológicas, políticas e econômicas dos últimos anos.
Quando se fala em IA e, mais geralmente, na transformação digital que a adoção da IA possibilita, é de importância extrema ter um entendimento claro sobre o que queremos, quais são os nossos interesses e como alcançá-los de maneira efetiva. Não ter clareza e visão estratégica sobre estes assuntos é uma falha capital.
Assim, o Brasil deveria usar os próximos meses como uma oportunidade para testar e afinar sua estratégia. O país tem uma ocasião única para promover uma visão positiva de soberania digital, que promova o desenvolvimento e recuse o autoritarismo, priorizando uma transformação digital cibersegura e sustentável.