O Brasil vai liderar uma expedição científica inédita que pretende fazer a maior circum-navegação na Antártida. O time internacional de 61 pesquisadores, oriundos de sete países, planeja passar 60 dias explorando mais de 20 mil quilômetros da costa do continente gelado e reunindo informações que permitirão, entre outras coisas, investigar a dinâmica das mudanças climáticas.
O projeto é liderado pelo glaciologista Jefferson Cardia Simões, do Centro Polar e Climático da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), veterano das pesquisas antárticas que acumula quase três dezenas de idas à região.
Há uma série de processos que fazem com que a periferia das regiões polares, tanto do Ártico quanto da Antártida, sofram primeiro as consequências do aquecimento global. Não por acaso, é por lá que onde também aparecem primeiro muitos dos sinais das alterações climáticas.
“A Antártida também amplifica os sinais de mudança do clima”, explica Jefferson Simões. O local, portanto, “é quase como um canário dentro de uma mina”, fornecendo “avisos adiantados” sobre o que está acontecendo com o planeta.
A expedição é multidisciplinar e conta com pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, incluindo um levantamento aéreo inédito das massas de gelo que vai monitorar o comportamento das geleiras.
A estabilidade do manto de gelo da Antártida, que tem cerca de 90% de todo o gelo do planeta, é justamente um dos principais pontos da pesquisa.
“O continente antártico em si é coberto por um manto de gelo com espessura média de 2 km, mas em alguns lugares isso chega a quase 5 km. Ele está constantemente fluindo do interior para a periferia e, quando chega lá, ele flutua. Isso é tudo gelo de água doce”, detalha o líder da expedição.
O glaciologista explica que o grupo vai investigar algumas hipóteses sobre a linha de flutuação. “Essa posição aqui é instável e pode começar a retrair rapidamente e dinamicamente desestabilizar a Antártida, fazendo com que o gelo flua mais rapidamente para dentro do oceano. Isso, é claro, tem consequências para o nível do mar.”
Os cenários do IPCC (painel de especialistas do clima da ONU), indicam uma subida dos oceanos de até aproximadamente 1,2 metro até 2100. A desestabilização do gelo na Antártida, contudo, tem potencial para ampliar significativamente essa cifra.
“Se ocorrer desestabilização desse gelo da Antártica, hipóteses indicam um aumento de quatro, cinco e até seis metros do nível do mar em 200 a 300 anos. Então, nós estamos falando em outra escala, que tem muito mais impacto na sociedade, nas planícies costeiras, com um grande custo social”, disse Jefferson Simões.
Os cientistas da expedição também vão se debruçar sobre outras questões, como os possíveis efeitos do aumento da acidificação das águas. Esse fenômeno acontece porque os oceanos absorvem uma parte significativa do dióxido de carbono (CO2) emitido no planeta.
Além de potencialmente afetarem os ecossistemas marinhos, as mudanças no pH dos mares podem ter ainda outras consequências ambientais profundas.
“O oceano austral também está se tornando menos salino, porque tem chegado mais água doce [com o gelo derretido]. E isso tudo afeta a circulação atmosférica”, detalhou. “O oceano antártico também está aquecendo em várias regiões, principalmente aqui ao sul do atlântico, ao sul do pacífico. São as regiões onde se formam as frentes polares.”
Simões destaca que o sistema climático planetário é interconectado, e que essas mudanças no Sul do planeta acabam se refletindo em outros pontos, inclusive no Brasil.
“Vejamos o que aconteceu no Rio Grande do Sul em maio, com as grandes enchentes. Houve um bloqueio das frentes polares sobre o estado, porque o cerrado, o centro do país, estava anomalamente aquecido. E as massas polares ficaram aqui em cima. E aí caiu o mundo, com uma intensa precipitação.”
Além da coleta de amostras e de materiais na costa, a lista de investigações do grupo inclui a detecção da presença de microplásticos e até a verificação de possíveis vestígios da fumaça dos incêndios florestais que devastaram o Brasil e outros pontos da América do Sul nos últimos meses.
Continente mais frio, isolado e ventoso do mundo, a Antártida representa um desafio logístico e financeiro para as pesquisas. O custo estimado do projeto é de US$ 6 milhões (R$ 37,7 milhões), sendo cerca de 97% custeado pela fundação suíça Albédo Pour la Cryosphère, voltada para a pesquisa e a conservação do gelo e da neve.
Do lado brasileiro, a expedição tem apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul).
Como o projeto vai se embrenhar por vários pontos mais distantes na Antártida, é essencial o uso de um navio especialmente preparado para enfrentar as condições das águas da região. O Brasil não dispõe de embarcações com essas capacidades.
A expedição será realizada a bordo do quebra-gelo científico russo Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica, de São Petersburgo.
Entre os 61 cientistas que integram a missão, há 27 brasileiros. As restantes nacionalidades incluem Argentina, Chile, China, Índia, Peru e Rússia.
“Não é uma expedição dos Brics, mas temos uma forte presença dos países do bloco”, dos Simões.
A partida está marcada para 22 de novembro no porto de Rio Grande, no Rio Grande do Sul.