A atual proposta de constituição de uma rede de Atenção Primária à Saúde (APS) no Brasil não tem conseguido cumprir o que foi destinado como sua missão: resolver de 80% a 90% das necessidades das pessoas, de acordo com recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde), e ser a ordenadora da rede assistencial. Esta fragilidade é atribuída em geral ao subfinanciamento do sistema, o que explica parte do problema.
Outra questão igualmente importante, no entanto, diz respeito ao modelo produtivo da saúde, que obedece a lógicas de organização de serviços na qual a Atenção Primária é estruturalmente pensada com escopo reduzido de ações. E isso tem sido impeditivo para a ousadia de cumprir aquilo que foi pensado como sua missão estratégica.
O Brasil tem uma vigorosa Rede Básica de Saúde, contando com 48.162 Unidades Básicas e 61.262 equipes de Saúde da Família (eSF), segundo o Ministério da Saúde. Isto, porém, não impede que o Sistema Único de Saúde (SUS) seja altamente dependente de ações de cuidados hospitalares.
Reverter esta lógica necessitaria a constituição de uma Rede Básica mais robusta, com escopo ampliado de ações. Isto, por sua vez, requer operar um conceito de que a rede de serviços territorialmente referenciada deve contemplar também os “cuidados intermediários”. No Brasil, não há uma rede de cuidados entre a Atenção Primária e a Rede Hospitalar dedicada a usuários que necessitam de atenção mais intensiva do que é ofertado Rede Básica atual. Esses usuários não necessitariam uma internação hospitalar caso houvesse um incremento na resolutividade dos serviços territoriais.
O Royal College of Physicians e a British Geriatrics Society, ambos no Reino Unido, definem “cuidados intermediários” como “serviços que não exigem os recursos de um hospital geral, mas que estão além do escopo da equipe tradicional de atenção primária. Isso pode incluir ‘cuidados substitutivos’ e ‘cuidados para pessoas com necessidades complexas’”. Pessoas em condições crônicas, egressos de internações hospitalares e muitos outros casos seriam elegíveis para esses cuidados intermediários.
Isto aumentaria muito a resolutividade da Atenção Básica, assim como otimizaria a utilização dos leitos hospitalares, que ficariam reservados aos casos de real necessidade. Hoje há grande quantidade de internações desnecessárias, por falta de serviços territoriais mais resolutivos.
O dispositivo Hospital Comunitário, uma Unidade de Cuidado Intermediário, é utilizado em vários países europeus para internação temporária de casos agudos. Ele opera com centralidade nas tecnologias leves para o cuidado a usuários, com atribuição de prevenir hospitalizações desnecessárias, apoiar o processo de alta hospitalar e intervir nas dificuldades de integração da rede assistencial de saúde, nos termos do National Health Service (NHS), no Reino Unido, e o Servizio Sanitario Regionale da Região Emilia-Romagna, na Itália.
Embora a falta de uma rede de cuidados intermediários entre Atenção Básica e Hospitalar estruturada no SUS represente uma lacuna na sua configuração, o Brasil tem a oportunidade única de constituí-la. Para isso, o país conta com uma rede de hospitais de pequeno porte (até 49 leitos) distribuídos em todo território nacional e subutilizados devido à baixa densidade tecnológica e resolutividade.
Dados de 2019 do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Brasil informam que são 5.187 hospitais de pequeno porte no país, dos quais 3,3 mil são exclusivamente SUS, o que significa 64.988 leitos. A taxa de ocupação destes hospitais, segundo dados do Sistema de Informação Hospitalar do Ministério da Saúde – SIH/SIA-SUS de 2018, era em torno de 20% a 30%. A grande maioria destes hospitais se encontra em pequenos municípios, e 60% deles estão sob gestão pública municipal.
Preenchendo a lacuna
O que se propõe aqui então é a constituição de uma Rede de Cuidados Intermediários conectada em fluxos assistenciais com a Atenção Primária, a ser instalada junto aos hospitais de pequeno porte, ou seja, utilizando recursos já existentes. Sugere-se que sejam elaborados projetos singulares para cada hospital de pequeno porte a fim de atender as necessidades e cultura locais, conforme perfil sociodemográfico, epidemiológico e possibilidades em âmbito local e regional, e participação comunitária envolvendo os Conselhos de Saúde em decisões compartilhadas.
É um projeto de baixo custo e alta eficácia, como demonstra estudo randomizado realizado na Noruega com idosos, que comparou atendimento intermediário no Hospital Comunitário com outros internados em leitos hospitalares gerais em unidades médicas, cirúrgicas e ortopédicas. O estudo demonstrou uma redução das taxas de reinternação para usuários aos quais foram oferecidos cuidados intermediários.
No Reino Unido e Itália há um duplo fluxo de ingresso às unidades de cuidados intermediários (Hospital Comunitário). O primeiro é formado por usuários encaminhados da Atenção Primária, e o segundo por egressos de internação hospitalar com necessidade de ganhos de autonomia. Critérios e população elegíveis são estabelecidos conforme a especificidade e características destes serviços e na continuidade do cuidado, onde os usuários têm diagnóstico e história clínica conhecidas nos serviços de saúde.
A título de demonstração, podemos inferir que a criação de uma Rede de Cuidados Intermediários atuando em conexão com a Atenção Primária, entre outras possibilidades, no Brasil poderia reduzir significativamente as Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP). São internações cujo problema de saúde poderia ser resolvido no primeiro nível de atenção e que, quando não o são como hoje em dia, acarretam internações hospitalares evitáveis.
Para se ter uma ideia da dimensão do problema, estudo realizado em âmbito nacional informa a ocorrência de 1.116.917 ICSAP no Brasil em 2014, com maior percentual representado pelo grupo das pneumonias (22,72%), seguida das doenças cerebrovasculares (9,63%) e insuficiência cardíaca (9,32%). Estes dados demonstram o que poderia ser um impacto positivo de uma iniciativa como esta sobre o SUS.
Desta forma, uma Rede de Cuidados Intermediários poderia cobrir uma importante lacuna existente na configuração da Rede Assistencial do SUS. Isso teria efeitos práticos no aumento da oferta de serviços territoriais e maior resolutividade da Atenção Primária, favorecendo assim sobremaneira a gestão do cuidado e o conjunto de usuários da rede pública de saúde brasileira.