Quando me foi sugerido que parasse de beber, tinha acabado de descobrir que fazia parte da parcela da população (cerca 10%) que não pode ingerir bebidas alcoólicas porque possui um “transtorno crônico caracterizado pelo consumo excessivo de álcool, resultando na incapacidade de controlar sua ingestão. Isso pode afetar a saúde, relações pessoais e o trabalho, além de aumentar o risco de acidentes e violência”.
Era o que informava o folheto que me deram ao dar entrada na clínica de “rehab” em que me internei de livre espontânea, aliás, contra a vontade da minha família. Os Gancia achavam que eu era maluca e bebia em decorrência. E não que ficava maluca depois de beber. Eram outros tempos.
Pensei que o especialista que me foi designado na clínica estivesse brincando quando me comunicou, logo de cara, que, se eu queria mesmo parar de beber, teria de mudar apenas três coisas: “Hábitos, pessoas e lugares”.
“Cê deve estar me zoando, né?” Só não levantei e fui embora porque a ideia da internação havia sido minha.
Passados 30 anos dessa conversa, em novembro de 2018, lancei um livro chamado “A Saideira”, que está sendo relançado agora pela editora Matrix, sobre minha saga no alcoolismo e nas drogas —e como finalmente consegui me livrar da praga da bebida, a dependência que me levava a todas as outras.
O que me motivou a contar minha história, além de o relato ser uma das práticas dos 12 Passos (em síntese: ajude aos outros com o mesmo problema para continuar ajudando a si mesmo), foi contar para quem sabe que tem que parar de beber, mas não para, que existe “vida inteligente” depois da bebida.
Em outras palavras, que dá para dar risada, viver uma vida “não careta”, interessante, até fascinante, mesmo sem o barato causado pelas drogas e o álcool.
Você terá de fazer concessões, claro. Não poderá mais ser o primeiro a chegar na festa e o último a ir embora. Terá de brindar a meia-noite do Ano Novo com algum substituto do champanhe, esse tipo de coisa.
Em compensação: 1) passará a acordar sem ressaca, sabendo onde dormiu; 2) conseguirá cumprir todos os compromissos do dia seguinte; 3) sua performance no trabalho quintuplicará em matéria de qualidade (essa melhora é inacreditável e, por si só, vale todo o esforço); 4) seu relacionamento com a família, que o álcool levou a ser quase insuportável, voltará a níveis toleráveis; 5) acordará sabendo onde estacionou o carro; 6) sua relação com as redes sociais, suas chaves, seu celular, seu saldo bancário, seu sono, seu vizinho/síndico e seu fiofó passarão por um aprimoramento incomensurável; 7) e, o mais importante de tudo: você voltará a confiar em si mesmo.
Atrasei o início da minha recuperação em vários anos, poderia ter me poupado e à minha família, aos amigos, à categoria dos garçons de São Paulo e do Rio de Janeiro e à sociedade em geral em hectares de pesar (como se mede o pesar, em litros, arroubas, acres?), se tivesse parado assim que vi que estava perdendo a mão. Mas não parei porque achava que, do outro lado, só havia angústia e tédio. Muito tédio.
Não há nada mais equivocado. Sim, você acaba mudando “hábitos, pessoas e lugares”. Só que uma vez que o corpo fica uma medida x de tempo (para cada pessoa é diferente) sem bebida e volta a produzir os chamados “hormônios da felicidade”, dopamina, serotonina, oxitocina etc. (cuja ingestão em quantidade e frequência o álcool inibe), você volta a sentir gosto pela vida.
A questão é aguentar a angústia durante o tempo que vai levar para voltar a produzir esses hormônios.
No meu caso, usei uma estratégia dos membros de AA, de negociar com a bebida. Cheguei à conclusão que toda vez que ela entra em cena, eu perco o combate.
E eis que a ficha caiu, a chave girou e ocorreu a epifania.
Hoje, conto 18 anos e 23 dias sem beber. Só por hoje.