Um grupo de chineses é suspeito de comandar parcialmente o gerenciamento de um banco com movimentações bilionárias no Brasil, que encaminhou irregularmente muito dinheiro a outros países e aplicou crimes financeiros na casa dos R$ 6 bilhões nos últimos cincos anos, segundo a Polícia Federal (PF).
O esquema ocorreria por meio de uma associação de um grupo chinês com organizações criminosas voltadas ao tráfico e contrabando. Haveria ainda uma possível ligação com o Primeiro Comando da Capital (PCC). De acordo com a Polícia Federal, um dos donos do banco seria um policial civil do estado de São Paulo. O policial apareceu, inclusive, em uma delação premiada contra o PCC, fechada pelo empresário Vinicius Gritzbach, que foi morto a tiros em 8 de novembro do ano passado no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
A investigação aponta que nem todas as operações do banco são ilegais. O esquema começou há mais de dois anos. Há indícios de envolvimento no suposto esquema fraudulento de quadrilhas especializadas no tráfico de drogas, de armas e no contrabando.
Parta chegar ao montante bilionário das fraudes, a PF rastreou cerca de R$ 120 bilhões em movimentações financeiras entre operações de débito e crédito. Gerentes bancários e contadores também são suspeitos de integrar o esquema. Dezesseis pessoas foram presas no fim de novembro de 2024, suspeitas de operarem o esquema fraudulento.
Segundo as investigações, a organização atuou em pelo menos 15 países, muitos considerados paraísos fiscais, onde eram realizadas lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Durante esse período, os valores bilionários circularam, de acordo com a PF, além do Brasil para: China e Hong Kong, Estados Unidos, Canadá, Panamá, Argentina, Bolívia, Colômbia, Paraguai, Peru, Holanda, Inglaterra, Itália, Turquia e Emirados Árabes.
Segundo a PF, o banco oferecia serviços a interessados em geral, inclusive a quem tinha como objetivo driblar o fisco e praticar evasão de divisas. Por esse motivo, a Receita Federal participa das análises fiscais.
Fraudes representam aperfeiçoamento dos serviços de doleiros
Segundo a PF, o esquema representa um aperfeiçoamento dos trabalhos de doleiros para atender qualquer pessoa que tivesse como objetivo ocultar capital, lavar dinheiro, enviar ou receber valores do ou ao exterior e para isso eram utilizadas ao menos três fintechs. Não foi divulgada a relação de todas elas. Sabe-se apenas que o banco supostamente comandado em parte por chineses e que teria um policial civil como proprietário seria o 2 Go Bank.
O banco disse à Gazeta do Povo que a “instituição de pagamento segue rigorosas políticas de compliance, anticorrupção e de combate à lavagem de dinheiro, que obedecem aos padrões de mercado mais elevados — todas públicas, disponíveis em seu site”. “A 2GO acrescenta que está colaborando com as investigações e segue à disposição das autoridades”.
O policial civil do estado de São Paulo estaria na relação de delatados, por corrupção, apontado pelo empresário Vinicius Gritzbach. Somente no ano passado, o homem apontado como o líder do grupo teria movimentado cerca de R$ 800 milhões.
À Gazeta do Povo, a Secretaria de Estado da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) disse que o policial civil está afastado de suas funções desde dezembro de 2022. “A Corregedoria da Polícia Civil, que também apura os fatos, acompanha os desdobramentos da operação (…) e está à disposição da Polícia Federal para colaborar com as investigações”.
A reportagem procurou a defesa do policial civil, mas até a publicação da reportagem não obteve retorno. O espaço segue aberto às manifestações.
Em uma operação deflagrada pela PF de Campinas (SP) no fim de novembro, na qual o policial suspeito e outras 15 pessoas tiveram prisão preventiva decretada, foram apreendidos R$ 1,5 milhão em dinheiro e a Justiça Federal autorizou o bloqueio de R$ 10 bilhões em mais de 200 empresas suspeitas de atuarem em favor do bando.
Como eram feitas as transações bancárias ilegais
Segundo o inquérito policial, o principal objetivo era enviar remessas para o território chinês ocultando capitais, lavando dinheiro ou burlando a fiscalização e taxações no envio e recebimento internacional de dinheiro. Para essas transações, revela a PF, a suposta organização criminosa usava meios como:
- Boletagem: Com emissão de boletos é possível oferecer serviços de intermediação financeira e usar boletos para “esquentar” valores, criando a aparência de transações comerciais legítimas.
- Empresas de fachada: organizações fictícias criadas para disfarçar operações ilegais, ocultar recursos financeiros ou facilitar crimes como lavagem de dinheiro, corrupção e evasão fiscal.
- Laranjas: em um esquema criminoso são pessoas que emprestam seus nomes ou dados para ocultar os verdadeiros responsáveis por atividades ilegais.
- Falsificação de documentos de importação e exportação: criminosos se aproveitam da complexidade da burucracia do comércio internacional para falsificar documentos e evitar a apreensão de mercadorias pelas autoridades.
- Pulverização de operações bancárias: prática de dividir uma grande operação financeira em várias transações menores. Isso pode ser feito para facilitar a gestão do risco ou para atender a diferentes clientes e regiões. Porém, em alguns casos, pode ser usado de forma ilícita, como para evitar alertas de monitoramento financeiro, mascarando a origem de valores em crimes como lavagem de dinheiro.
- Operações de câmbio fraudulentas: envolvem manipulações ilegais em transações cambiais, como uso de documentos falsos, contas de laranjas ou empresas de fachada para transferir dinheiro ao exterior, mascarar a origem dos recursos ou sonegar impostos.
- Dólar-cabo: operação informal para transferir recursos entre países, geralmente sem passar pelo sistema financeiro oficial podendo envolver métodos mais modernos como o uso de fintechs e transferência de dinheiro para criptoativos.
A Polícia Federal afirma que os novos modelos e instrumentos de lavagem de dinheiro e evasão fiscal permitiram à organização multiplicar seus lucros, passando de operações de milhões de reais para valores na casa de bilhões de reais.
Os investigados devem responder pelos crimes de organização criminosa, ocultação de capitais, com foco à lavagem de dinheiro, e evasão de divisas, com penas que podem chegar a 35 anos de prisão.
Polícia rastreia segundo banco bilionário suspeito de operar para o crime
Esse é o segundo banco, supostamente, a serviço do crime organizado em poucos meses no Brasil. Em outro deles, a Polícia Civil de São Paulo identificou um banco que operou, para o PCC, cerca de R$ 8 bilhões. O objetivo da instituição criminosa era lavar dinheiro do tráfico e financiar políticos e campanhas eleitorais. Tratava-se do 4TBank. A Gazeta do Povo procurou representantes da instituição também suspeita de lavagem de dinheiro, mas não obteve retorno. O 4TBank não tem registro no Banco Central.
Desta vez quem está no alvo da PF é o 2 Go Bank. Segundo o inquérito, trata-se de um complexo sistema bancário ilegal dedicado à lavagem de dinheiro e evasão de divisas para o crime organizado.
O nome do policial civil de São Paulo investigado pela PF constava como CEO e fundador da empresa em seus sites de internet, mas o nome foi recentemente retirado. Sobre o possível afastamento de suas funções na instituição financeira, a reportagem fez contato com a defesa do suspeito e aguarda retorno.
Nas redes sociais, o 2 Go Bank se descreve como mais que uma instituição de pagamentos. “Oferecemos soluções financeiras e digitais para pessoas, empresas e clubes de futebol, com o objetivo de facilitar o dia a dia das operações. Por meio da nossa tecnologia, realizamos a automação das contas bancárias com a integração de APIs [Interfaces de Programação de Aplicativos] desenvolvidas para atender todas as necessidades dos clientes”.
A instituição afirma que trabalha com “tecnologia, velocidade e, principalmente, segurança jurídica”. A instituição financeira está devidamente cadastrada no Banco Central do Brasil (BCB), o qual foi procurado pela reportagem para tratar sobre as possíveis movimentações atípicas remetidas às autoridades de fiscalização e controle. O Banco Central disse apenas que “não comenta sobre as instituições supervisionadas”.
O empresário delator do PCC, Vinicius Gritzbach, chegou a dizer em um de seus depoimentos ao Ministério Público Estadual de São Paulo que o banco suspeito de também operar para o crime era usado para lavar dinheiro do PCC e que o policial civil teria ligações com membros do Primeiro Comando da Capital.
Entre eles, falou dos dois integrantes da organização criminosa assassinados em 2021: Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, e Antonio Corona Neto, o Sem Sangue. O empresário delator, assassinado no aeroporto de Guarulhos em novembro passado, chegou a ser acusado pela Justiça como mandante das mortes de Cara Preta e Sem Sangue. Ele sempre negou os crimes.
Crime organizado avança sem medo, sem freios e sem fronteiras
Para o especialista em segurança pública Sérgio Gomes, o avanço das organizações criminosas é preocupante e passou, muito rapidamente, a falar em bilhões de reais. “Avançam facilmente diante das facilidades que encontram para expandir negócios e mercados. Já atuam como verdadeiras multinacionais do crime”, reforça o profissional que integrou, por décadas, o serviço de inteligência das forças federais da segurança na região da fronteira entre Brasil e Paraguai.
Ele alerta que a expansão das organizações se intensifica por parcerias com máfias e cartéis pelo mundo, a exemplo do atual envolvimento de um grupo chinês. Recentemente, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, disse que, diante do avanço e da modernização das organizações criminosas, o Estado brasileiro precisa agir e defendeu a implantação da criticada PEC da Segurança Pública. O ministro disse que a segurança pública “necessita de modernização para acompanhar o avanço destas organizações”.
Para Gomes, é essencial haver mais policiamento nas fronteiras, intensificação do combate ao crime organizado, criação de novos e modernos mecanismos de investigação para sufocar financeiramente as organizações criminosas, rastreamento e apreenão de dinheiro. Mas é possível tomar essas medidas sem que o governo federal tente se impor às políticas dos estados. “Não tirar competências dos estados para centralizá-las na União”, completa o especialista.
A PEC vem sendo criticada por governadores, como os do Sul e Sudeste, que em novembro, durante reunião em Florianópolis, trataram da proposta da União. Os governadores se dizem preocupados com o que vem sendo posto e que precisam de contribuição da pasta, mas não de concorrência na segurança pública.