O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem tentado se colocar como ator importante na conclusão do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia. Mas analistas ouvidos pela reportagem afirmam que o importante passo dado na semana passada em direção ao livre comércio entre a América do Sul e a Europa foi fruto de uma conjunção de fatores internacionais, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a invasão da Rússia à Ucrânia.
O acordo comercial entre Mercosul e União Europeia está em negociação há mais de duas décadas. Na última sexta-feira (6), a assinatura do tratado internacional formalizando o acordo foi anunciada pela presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen (que atua como uma espécie de ministra de Relações Exteriores da União Europeia) e pelos presidentes Javier Milei (Argentina), Luis Lacalle Pou (Uruguai), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), e Santiago Peña (Paraguai).
Para começar a valer, o acordo precisa ser aprovado no Parlamento e no Conselho Europeu e ainda precisará ser ratificado pelos 27 países da União Europeia. A França já disse que vai se opor. A iniciativa pode criar um mercado de 700 milhões de pessoas com um Produto Interno Bruto conjunto de mais de US$ 21 trilhões.
Logo após a assinatura do tratado, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) afirmou: “Se não fosse o Lula, o presidente do Brasil, dificilmente esse acordo teria sido fechado”. A fala evidencia como o governo Lula vem tentando levar o crédito pelo avanço diplomático sem ser o responsável por ele. O argumento usado pela esquerda é que Lula traria mais credibilidade internacional na área ambiental que seu antecessor, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Apesar do engajamento da chancelaria brasileira nos últimos meses, analistas consultados pela Gazeta do Povo avaliam que esse não é um movimento institucionalizado pelo presidente Lula. Os especialistas afirmam que a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a instabilidade mundial gerada pelas guerras foram os fatores decisivo para uma mudança de postura dos europeus.
“Pelo lado da União Europeia houve uma movimentação, principalmente puxada pela incerteza do contexto geopolítico no próximo ano”, avalia o consultor de comércio internacional da BMJ Guilherme Gomes.
“O presidente Trump já antecipou algumas medidas que ele pode tomar em relação ao comércio internacional, com possíveis elevações tarifárias e isso preocupa um pouco a União Europeia. Portanto, havia uma expectativa por parte da Comissão Europeia de que se os termos desse acordo não fossem concluído neste ano, no próximo ano haveria desafios muito maiores e que talvez jogassem essa negociação com o Mercosul de lado”, avalia o consultor da BMJ. Para o analista, essa foi a janela de oportunidade que pode ter influenciado a mudança de postura da Comissão Europeia.
Assim como a União Europeia, o Brasil também foi alvo de ameaças do líder republicano, aí sim pela postura de Lula, que passou a fazer ataques sistemáticos ao uso do dólar no comércio internacional desde que assumiu seu terceiro mandato. Donald Trump disse que pode taxar em 100% os países dos Brics (grupo de países emergentes composto por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Irã, Arábia Saudita, Etiópia, Egito e Emirados Árabes Unidos), que insistirem na desdolarização. O bloco, que contesta a hegemonia americana, tem apostado no desenvolvimento de plataformas de pagamento entre os seus membros que não utilizem a moeda americana.
A invasão da Ucrânia por tropas do Kremlin em 2022 catalisou a união de países como Rússia, China, Irã e Coreia do Norte em um bloco antiamericano informal que vem caracterizando o que analistas chamam de Guerra Fria 2.0. Nesse contexto, China e Rússia começaram a investir nos Brics para trazer para seu lado países em desenvolvimento, como o Brasil.
A boa vontade atual da União Europeia para concluir o acordo com o Mercosul é uma reação a esse movimento. Ou seja, é um esforço para trazer mais nações do chamado Sul Global para o lado do Ocidente.
Na avaliação de José Augusto Castro, presidente da Associação do Comércio Exterior do Brasil (AEB), o anúncio da conclusão neste momento tem um caráter político e passa um recado ao “mundo”.
“Passamos aos olhos do mundo a ser ainda mais confiáveis, já que a União Europeia não fará acordo que possa trazer prejuízos aos seus membros”, avalia o presidente-executivo da AEB.
Lula falhou em viabilizar acordo quando ocupou presidência do Mercosul
Tradicionalmente é o governo brasileiro quem lidera as negociações do Mercosul com a União Europeia, segundo o consultor de comércio internacional da BMJ Guilherme Gomes. Desde que retornou ao Palácio do Planalto para seu terceiro mandato, o petista priorizou as tratativas com a União Europeia a fim de desenrolar os termos do tratado.
As negociações se intensificaram ainda no segundo semestre de 2023, quando o Brasil assumiu a presidência rotativa do Mercosul. Durante esse período, o otimismo no governo era alto e o Brasil chegou a adotar uma postura flexível para chegar a um consenso com o bloco europeu. Apesar da confiança de que as negociações, finalmente, chegariam ao fim, as expectativas de Lula foram frustradas com mais uma rejeição dos europeus em fechar o acordo.
Mesmo após a mudança da presidência no bloco para o Uruguai, a chancelaria brasileira disse que permaneceu engajada nas negociações com a União Europeia. “O anúncio da conclusão das negociações culmina processo iniciado em 2023, quando o Mercosul, sob a coordenação brasileira, e a União Europeia retomaram as tratativas birregionais. Nesses dois anos, foram realizadas, ao total, sete rodadas de negociações presenciais entre os dois blocos, todas em Brasília”, disse o governo brasileiro em comunicado tentando atrair para si o mérito alcançado durante a presidência do Mercosul de Luis Lacalle Pou.
Tratado entre Mercosul e União Europeia não foi ratificado e ainda pode ser negado
Apesar do anúncio feito pelas nações sul-americanas e pela Comissão Europeia, o acordo com a União Europeia ainda corre o risco de não ser chancelado. O consenso entre os dois blocos foi sobre os termos do acordo, que estavam sendo revistos desde 2019. Contudo, ele ainda precisa ser votado e aprovado para ser colocado em prática.
Os dois blocos negociam um acordo de livre comércio desde 1999, mas somente em 2019, ainda sob gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um texto finalmente foi elaborado. Os países do Cone Sul concordaram com o texto, mas ele encontrou resistência na Europa. Alguns países europeus se opuseram ao tratado justificando preocupações ambientais e sanitárias, além do receio com a produção interna.
Apesar das justificativas expostas, a oposição é motivada principalmente pelo protecionismo desses países. As nações que foram contra o tratado são grandes produtoras agrícolas e temem perder mercado para as commodities sul-americanas, sobretudo as brasileiras, que são de menor custo.
O presidente da França, Emmanuel Macron, tem se posicionado como a voz dessa posição na União Europeia e diversas vezes fez críticas ao acordo. O francês chegou a chamar o acordo de “ultrapassado” e defendeu que seus termos fossem revistos do zero. Lula, que tem uma relação de proximidade com o líder francês, tentou apostar nessa amizade para reverter o posicionamento de Macron, mas não teve sucesso.
Após as dezenas de revisões solicitadas pela UE no acordo de 2019, os dois blocos chegaram a um consenso inédito na última sexta-feira (6) e finalmente concluíram o documento. Agora ele precisa da aprovação dos Poderes Legislativos dos países sul-americanos, do Conselho e do Parlamento Europeu e dos parlamentos dos 27 países da União Europeia para entrar em vigor. E é esse processo que preocupa especialistas e os países sul-americanos, já que a França ainda pode atuar para brecar sua aprovação.