Juízes que são ao mesmo tempo vítimas e acusadores em processos; ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que dão entrevistas antecipando abertamente suas posições sobre os casos que vão julgar; decisões do Supremo que antecipam leis que estão sendo discutidas no Congresso.
Os atos esdrúxulos do Poder Judiciário brasileiro têm imposto um desafio para os professores da área de Direito Penal e Direito Processual Penal, que lidam com os procedimentos para apurar, julgar e aplicar penas no Judiciário. Alguns deles já não sabem o que e como ensinar na atual conjuntura da Justiça brasileira.
“Aos amigos que por consideração compraram meu livro, pedirei que seja queimado o exemplar”, disse recentemente via X um professor de Direito Processual, logo depois da decisão do STF sobre a Operação Contragolpe, em que o ministro Alexandre de Moraes é relator e vítima ao mesmo tempo. “A fase é de desalento. O cenário é de devastação”, complementou o docente, que prefere se manter anônimo.
O panorama de destruição da doutrina sobre o Processo Penal também é constatado pelo professor da área Rodrigo Chemim, que em entrevista recente ao jornalista Claudio Dantas definiu a situação de Moraes no processo sobre o suposto golpe como “um nada jurídico”. Segundo ele, Moraes não é apenas suspeito no caso: ele está impedido juridicamente de ser juiz no processo.
“Estar impedido é não ter poder jurisdicional naquele ato. É não poder exercitar um poder que ele passa a ter no momento em que vira juiz”, afirmou. “É ato juridicamente inexistente. É mais grave do que um ato nulo. Se um juiz realiza um ato estando impedido, é como se o ato juridicamente não existisse. É um nada jurídico”, complementou.
Em um comentário após a prisão dos militares determinada pelo STF no dia 19 de novembro, o jurista Fabricio Rebelo afirmou: “A sensação prevalente diante do que estamos presenciando é só mesmo a de que o Direito Penal morreu”.
Nas salas de aula de Direito, professores relatam dificuldade de ensinar após decisões do STF
Professores de Direito Penal afirmam que a atual conjuntura do STF e do Judiciário brasileiro não só cria dúvidas sobre a doutrina, mas impõe desafios também dentro da sala de aula, na formação de novos profissionais do Direito.
“O Direito não mudou, a teoria do Direito não mudou. Não penso que seja necessário reescrever os livros nem nada do gênero, mas há uma série de entendimentos que não coincidem com aquilo que a gente entende ser a melhor técnica jurídica”, diz o advogado criminalista Guilherme Lucchesi, professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Para ele, há quase duas décadas, a dificuldade de conciliar o que aparece nas notícias com a teoria do Direito é grande. Mas, nos últimos anos, o problema cresceu. “Essa dificuldade vem desde a época do Mensalão, que eu acho que foi um marco para nós, quase 15 anos atrás. Mas eu não tenho dúvida de que o inquérito das fake news, o inquérito do fim do mundo, o inquérito dos atos antidemocráticos e o inquérito dos ataques contra o Supremo têm contribuído de maneira bastante substancial para a confusão dos alunos. A gente precisa ensinar para eles que o que está se fazendo no STF é exceção, não é o que diz o Direito”, comenta.
O ponto de maior dificuldade, segundo ele, é explicar a questão da imparcialidade do magistrado e da necessidade de inércia jurisdicional, conceito segundo o qual o magistrado somente atua mediante provocação. “A atuação de ofício pelo magistrado é totalmente incompatível com o Direito Processual Penal, em especial depois da reforma que o Código de Processo Penal teve em 2019, com a chamada Lei Anticrime, que deixa bem claro que o magistrado não pode atuar de ofício”, diz.
“A gente vê uma investigação em que o magistrado acumula simultaneamente quatro papéis, de julgador, de investigador, de acusador, e de vítima. Isso geraria, pela própria Constituição, suspensão e impedimento do magistrado para agir. A gente tem que de algum modo contextualizar e dizer que, se fosse em qualquer outro caso, conduzido por qualquer magistrado em primeira ou segunda instância, situações como essa não poderiam subsistir”, acrescenta Lucchesi.
A vereadora eleita em São Paulo Janaina Paschoal (PP-SP), que é professora de Direito Penal na USP, vê a mesma dificuldade. “Fica difícil falar em suspeição e impedimento, pois os ministros concentram muitos papéis e muitos poderes. O Direito que aprendi, que ensinei e tento ensinar, já não existe mais”, afirma. “Sob o ponto de vista de fartura de material, [os casos] até são interessantes, pois há uma infinidade de questões a explorar, não só nas aulas teóricas, mas em seminários, provas, trabalhos científicos. Mas, no que concerne ao rigor jurídico, à segurança jurídica, é triste!”, complementa ela.
Para Lucchesi, os alunos, “enquanto futuros profissionais, enquanto futuros juristas, precisam compreender que essa não é uma maneira correta de se fazer Direito, e que se algum dia tiverem a oportunidade de exercer cargos dessa natureza, que julguem conforme o Direito, senão receberão as mesmas críticas que essas autoridades hoje têm recebido”.