Pelo que sabemos até agora, um homem-bomba planejou e pôs em prática um atentado suicida na Praça dos Três Poderes nesta semana. Considere como seria impensável que algo assim acontecesse no Brasil de 20 anos ou mesmo de dez anos atrás.
Se voltássemos no tempo para contar que uma cena dessas seria vista em 13 de novembro de 2024, iam rir da nossa cara e dizer que homem-bomba é “coisa de país onde todo mundo usa turbante” (reação preconceituosa, claro, mas previsível). Muita coisa precisou mudar no país para que o atentado de quarta-feira passasse do impensável para o possível. Mas desconfio que uma das mais importantes tenha sido o avanço da imaginação apocalíptica por aqui.
As raízes desse tipo de pensamento são, é claro, muito antigas. E, feito um rio subterrâneo (perdão pela mistura de metáforas), volta e meia elas voltam a aflorar e irrigar o mundo da cultura em qualquer lugar onde o cristianismo, o islamismo ou o judaísmo sejam as visões religiosas dominantes.
Há indícios, porém, de que as raízes da imaginação apocalíptica vêm de fora dos três grandes monoteísmos. Elas teriam brotado da antiga religião persa, que começou a influenciar o judaísmo há uns 2.500 anos, quando o Templo de Jerusalém estava sendo reconstruído (com financiamento imperial da Pérsia, aliás).
A mais importante “impressão digital” dessa influência seria o dualismo. Nessa visão de mundo, o Cosmos é um campo de batalha em que o Bem e o Mal, com forças mais ou menos equiparadas, enfrentam-se desde o princípio dos tempos. Cabe a cada um escolher um dos lados, e não há meio-termo ou negociação possível entre eles.
Outro elemento-chave, destacado pelo saudoso Dale Martin (1954-2023), professor de estudos religiosos da Universidade Yale (EUA), é a atmosfera de “encurralamento” na qual a lógica apocalíptica costuma emergir e se fortalecer. No suposto campo de batalha cósmico, quem adere a esse pensamento se enxerga como um soldado para quem restaram poucos companheiros de luta, encurralados por forças inimigas quase totalmente triunfantes.
Isso significa que a visão apocalíptica pode surgir entre grupos minoritários, com pouco poder político e prestígio social. Ou em grupos que acreditam estar nessa posição de inferioridade —mesmo alguns dos homens mais poderosos do mundo, como o presidente americano Ronald Reagan (1911-2004), viam-se nessa posição, assim como fundamentalistas brasileiros de hoje enxergam “cristofobia” num país com predomínio absoluto da cultura cristã.
O terceiro elemento crucial é a presença de um “timeline” mais ou menos claro para a conclusão do drama cósmico. Não vai demorar, dizem eles: a qualquer momento, o confronto final entre Luz e Trevas vai acabar acontecendo. Não é à toa que grupos conspiracionistas gostam de falar num “Grande Reset” da “Ordem Mundial” em 2030, ou que bolsonaristas inconformados falavam em “só mais 72 horas” para que os resultados da eleição de 2022 fossem revertidos.
Falta, é claro, um último ingrediente: a legitimação simbólica da violência. Afinal, se o que está em jogo é tão definitivo e sagrado, vidas humanas aqui e agora são um preço comparativamente baixo a ser pago.
É nesse caldo radioativo que o extremismo de direita anda marinando milhões de pessoas na última década. Uma hora a panela explode. E é muito difícil enfiar o gênio de volta na garrafa.
LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.