Em carta de despedida, o poeta imortal Antonio Cícero, que sofria com Alzheimer, expressou o seu cansaço de viver. Aos amigos, explicou a decisão pelo suicídio assistido a que se submeteu na Suíça, país onde a prática é permitida. “O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável”, ele disse.
As palavras do escritor, que reacenderam discussões sobre o desejo pela morte, fazem eco com as vozes de muitos pacientes que enfrentam doenças agudas e incuráveis. Ouvir que alguém quer morrer costuma gerar desconforto nas pessoas, que logo fazem julgamentos morais sobre aquele desejo. Mas esse não é um sentimento legitimamente humano?
Desejar o fim da vida geralmente é algo que alguém experimenta em contextos de dor intensa, desesperança ou esgotamento emocional. Cícero, por exemplo, explicou aos seus amigos que a perda progressiva de memória o fazia esquecer até mesmo de pessoas com as quais conviveu, e que o comprometimento das suas habilidades intelectuais o deixaram sem condições de continuar as atividades que amava, como escrever e ler.
Ao me deparar com o desabafo do poeta, me lembrei de como já ouvi falas similares em conversas com pacientes que enfrentavam quadros críticos de saúde.
Cristiane, por exemplo, tinha aproximadamente 50 anos, e enfrentava um câncer em estágio terminal. Sem forças para sustentar o peso do seu próprio corpo, já não saía mais da cama. Em uma de minhas idas ao hospital para ouvi-la, ela me olhou e sussurrou: “Pede pra Deus me perdoar, mas eu não vou mais lutar. Eu quero morrer.”
O que me impactou naquela fala não foi a partilha do seu desejo de morrer, mas a ideia de que ela precisaria de perdão. Afinal, qual é o pecado de se dizer que não quer mais viver?
Minha paciente não estava atentando contra a vida, ou desprezando o seu valor. No limiar de um sofrimento denso e crônico que sabia ser irreversível, ela procurava respeitar a sua própria vulnerabilidade.
O fato de ter me pedido para suplicar a Deus que a perdoasse me fez recordar de alguns episódios da Bíblia em que personagens expressavam sua dor desejando morrer. “Por que não morri ao nascer, e não pereci quando saí do ventre?”, relata Jó em seu livro (Jó 3.11). Lamento parecido fez o profeta Jeremias: “Maldito o dia em que nasci; não seja bendito o dia em que minha mãe deu à luz” (Jr 20.14). Se eles puderam fazer essas orações, por que minha paciente não poderia?
Mas se engana quem pensa que é só a cultura religiosa que lida mal com o desejo da morte. Tenho pacientes que não professam nenhuma fé, e que relatam como, ao expressarem a familiares seu cansaço pela vida, são repreendidos com falas como “você não pode sentir isso”.
A reação de um parente ou amigo que tenta demover de alguém o desejo pela morte é natural e compreensível. Por que perder o convívio com alguém que se ama?
Acontece que a marginalização dos afetos negativos não fará com que eles deixem de existir. É impossível extirpar emoções e sentimentos; e ainda que fosse possível, não seria recomendável. Sentimentos negativos nos constituem, e nos ajudam a perceber nossos limites.
Tratar o desejo pela morte como uma fraqueza a ser imediatamente reprimida evidencia a nossa inabilidade de lidar com o assunto. Isso não significa que o tema deva ser trivializado, e que ninguém deva lutar pela própria vida ou pela de quem se ama. Apenas que precisamos encontrar caminhos que humanizem os afetos. Na maior parte das vezes, refletindo sobre o desejo de morrer, as pessoas encontram outras formas de viver.