Três tiros foram disparados contra a cabeça e um outro em direção à coluna. Mesmo com sequelas irreversíveis, a vítima conseguiu sobreviver. Está com quatro projéteis alojados no corpo. Num acidente em choque com a sacada de vidro espelhado, outro paciente foi submetido a um implante. Recupera-se, apesar de ter perdido a autonomia. A poucos passos dali, ouve-se o que parece um grito misturado ao choro. Agonizando, o enfermo recebe medicação para aplacar a dor, oriunda de um abscesso em membro torácico.
O primeiro relato é de uma fêmea gambá adulta, que ficou cega do olho esquerdo. Nos próximos meses, ela irá passar por teste de adaptação com monitoramento de câmeras, mas dificilmente conseguirá sobreviver sozinha na natureza. O segundo caso é de um urutau, ave conhecida como mãe-da-lua, que está tendo que reaprender a se alimentar e a voar. Já a última história refere-se à vida de um bugio, provavelmente ferido numa briga com outros integrantes do bando por disputa de território.
O que une todos esses animais silvestres é o fato de eles serem vítimas da violência direta ou indireta da ação humana.
“Durante a primavera, passamos de dois casos por dia, em média, para 40”, calcula a veterinária Vanessa Caldeira Olivares, 37, coordenadora das áreas clínica e cirúrgica da Divisão de Fauna Silvestre da Prefeitura de São Paulo.
“São animais que chegam atropelados, com cortes provocados por linha de pipa, eletrocutados, muitos deles, vítimas de vandalismo, feridos a bala, machucados por pauladas”, diz ela. “Sem contar aqueles que são vítimas do tráfico de animais silvestres, crime que ocorre de feiras populares ao comércio na internet.”
Estamos num naco verde espremido entre as rodovias Anhanguera e Bandeirantes, o Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres, em Perus, zona norte. O recinto fica a cerca de 30 km do centro da capital. Oferece acolhida a animais de resgate, que passam por atendimento feito por uma equipe de ao menos 60 profissionais, como veterinários, biólogos, estudantes e tratadores.
Ali há laboratório para exames, berçários para filhotes e ambientes voltados para a recuperação dos sofrentes. O objetivo é reabilitar os animais para que possam ser devolvidos à natureza. Esse tipo de ação pode ocorrer tanto nos arredores da metrópole quanto em outros estados, em situações de repatriação para o local de origem.
Devido à alta rotatividade, a quantidade de animais ali pode variar a depender do dia. São, ao menos, 1.400 indivíduos.
A explosão no número de entregas nesta época leva em consideração fatores como a estação do ano. Olivares explica que a primavera é o período reprodutivo. Adultos costumam ficar mais ativos na busca por parceiros. “Nesse clima de concorrência, filhotes se tornam mais vulneráveis”, diz a veterinária.
A situação deve se agravar nas férias de verão, época em que o céu da cidade é tomado por pipas conduzidas por linhas carregadas por uma mistura de cola com vidro moído. “Além de provocar machucados nas asas, há aves, como periquitos, que utilizam essa linha na confecção de ninhos. Os filhotes acabam tendo partes do corpo necrosadas por causa desse produto.”
Numa manhã de domingo de sol quente, a equipe de veterinários já tinha recebido ao menos 50 animais, sendo 19 aves apreendidas em Cidade Ademar, na zona sul. Entre elas, pássaro-preto, tico-tico e galo-de-campina, o cardeal-do-nordeste. Na segunda leva entregue por guardas ambientais, vieram outras 35 aves e 6 jabutis, encontrados numa feira que vende de forma criminosa animais silvestres, na zona leste.
Os bichos foram transportados em um veículo especial climatizado da GCM (Guarda Civil Metropolitana) Ambiental, que possui apenas duas viaturas desse tipo para resgate de animais silvestres —não há previsão para ampliar essa frota, diz a prefeitura.
As entregas também são feitas por moradores que acabam encontrando os bichos na rua, aos pés das árvores, no quintal ou na vizinhança. Existe outra unidade no Ibirapuera que também recebe animais silvestres.
Todos eles passam por triagem e são divididos em dois grupos: os que vieram de vida livre e os oriundos do tráfico. O procedimento é importante para evitar proliferação de doenças por fungos, bactérias e vírus.
“Muitos chegam em condições precárias de higiene, em gaiolas sujas e superlotadas, o que favorece a proliferação de parasitas”, explica Olivares. “Estão estressados, com imunidade baixa; unhas e bicos compridos, empenamento quebrado, com movimentos repetitivos e até mutilação.”
É elaborado um relatório de maus-tratos. Daí, seguem para a área do quarentenário. Depois da alta clínica, os que se encontram com a saúde em dia podem ir para a reabilitação, de olho numa futura soltura, explica Alice Soares Oliveira, 40, veterinária e coordenadora do quarentenário.
Com cerca de três meses, um filhote de urubu caminha pelo solário do berçário. Recebe comida e mantém treino diário para fortalecer a musculatura das asas. Assim, o urubuzinho ensaia seus primeiros voos.
Na clínica, o bugio do início da reportagem precisou ser anestesiado para um exame. “O que me deixa mais triste é ver a agressão humana contra esses animais numa cidade que não para de crescer, que só avança e reduz o habitat dessas criaturas”, diz a veterinária Melissa Prosperi Peixoto, de 45 anos, 14 deles dedicados a atender aos animais vitimados. Ela calcula que 25% de seus pacientes são mamíferos. A maioria, 70%, é ave. Apenas 5% dos acolhidos são répteis.
As aves talvez sejam as que conseguem voltar com mais frequência ao habitat. O processo de reabilitação delas pode levar de um mês a dois anos, de acordo com a bióloga Clarice Thomaz, 29, técnica de reabilitação de aves silvestres. Ele envolve treino de caça, voo, desenvolvimento, exercícios para o fortalecimento da musculatura e avaliação comportamental.
Nesses casos, a soltura pode ocorrer tanto em parques públicos quanto em áreas parceiras de RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural).
Há, contudo, animais acostumados ao convívio humano. É o caso de uma coruja suindara ou coruja-de-igreja, que viveu dez anos em cativeiro. Os próprios donos fizeram a entrega voluntária da ave ao centro. A equipe da Divisão de Fauna Silvestre ensina o animal a caçar sozinho, escondendo pequenos roedores e insetos no seu recinto. Aulas de voo são feitas em espaços amplos, num processo de desapego doméstico e de adaptação à natureza.
Diante do número de animais silvestres que não param de chegar ali, a dúvida é se ainda haverá espaço na natureza, cada vez mais ameaçada pelo homem, para receber tanto bicho de volta.