Após a condenação, nesta quinta-feira (31), dos assassinos de Marielle Franco e de Anderson Gomes, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, irmã da vereadora, afirma que a luta continua. Agora, espera pela condenação dos mandantes do crime, mas diz sentir que a justiça começou a ser feita.
Em entrevista à Folha nesta sexta (1º), a ministra negou que vá conceder o perdão pedido por Ronnie Lessa, um dos condenados, e destacou a frieza do réu ao relatar o dia do assassinato. “Não cabe a ninguém [perdoar]. Isso é ele com a consciência dele.”
Lessa foi condenado a 78 anos e 9 meses de prisão, além de 30 dias-multa. O também ex-policial Élcio Queiroz foi sentenciado em 59 anos e 8 meses, além de 10 dias-multa —ambos fizeram acordo de delação e por isso não devem cumprir toda a pena.
Anielle, que há poucos meses se viu no centro das denúncias de importunação sexual contra o ex-ministro Silvio Almeida, diz que sua família vive momentos difíceis desde o assassinato em 2018 e que os acontecimentos dos últimos meses lhe deixaram ainda mais exposta. “Não que tenha comparação, mas nenhuma mulher deve sofrer violência política de nenhum tipo.”
O que representou o julgamento e a condenação dos homens que mataram a sua irmã?
A gente preferia mil vezes a Mari aqui. Mas olhar para trás e ver tudo que a gente fez foi um sentimento de que a justiça começou a ser feita, de que a nossa luta tem valido a pena. Mas a nossa dor e a falta da Mari vão continuar.
A justiça chegou para a minha família. Infelizmente, não chega para muitas das famílias do nosso país, mas ali não era só pela Mari, pelo Anderson, era por todos aqueles familiares de vítimas de violência.
A senhora concorda que o julgamento foi como um segundo velório de Marielle?
Em partes, sim. A frieza daquelas pessoas falando de como eles planejaram, o porquê, o dinheiro. Foi um soco no estômago, e às vezes as lágrimas desciam de indignação, de raiva, de saudade.
Por outro lado, teve o depoimento da minha mãe, em que ela falou que não conseguia nomear o tamanho da dor dela. Parecia um velório, mas, além disso, as pessoas estavam sendo obrigadas a reviver momentos e se transportar de volta para aquele dia fatídico.
Vimos seu pai chorando e a senhora até pediu para que ele mantivesse a calma. Por que acha que ele se afetou mais no final?
Meu pai é o mais calmo. No dia 14 de março de 2018 [dia do assassinato], ele estava assistindo ao jogo do Flamengo quando entra o noticiário falando da filha dele. Ele ficou na mesma posição por horas, só desabou no velório, no momento em que chegou perto do caixão.
Ontem [quinta, 31] ele disse assim [para a família]: “‘não tinha como não chorar hoje pela sua irmã, pela sua filha, pela sua mãe”. Eu acho que foi um choro muito sincero, mas um choro de um cansaço emocional que eles têm tido nesses últimos seis anos.
A senhora comentou sobre a frieza do Ronnie Lessa de descrever a situação. Ele chegou a se referir ao assassinato como um trabalho. Como foi ouvir isso?
É uma indignação. Ele teve a cara de pau de falar ali que era um trabalho e que ele estava ansioso.
Isso não é trabalho. Trabalho honesto era o que eu fazia e faço ainda hoje, o que a minha irmã fazia também, o que a Luyara [filha de Marielle], minha mãe e meu pai fazem até hoje.
O cara vem falar sobre trabalho, que foi tirar a vida de uma mulher que foi eleita honestamente, para ganhar R$ 25 milhões e ficar ali bebendo depois do crime. É muito repugnante. Depois ele tem a cara de pau de pedir perdão.
A senhora acha que é possível perdoar?
Acho que não sou eu que tenho que perdoar ele. Ele que tem que se perdoar com ele, com o que ele acredita, seja lá qual for a religião. Pedir perdão para familiares que tiveram ali uma das pessoas mais importantes das nossas vidas, tirada da maneira que foi? Não cabe a mim, não cabe à minha mãe, não cabe a ninguém. Isso é ele com a consciência dele.
Ainda não foi comprovada uma relação direta da polícia e da política nesse assassinato. Chamam a atenção as evidências que misturam polícia, política e milícia do Rio?
Se for comprovado que aqueles dois cidadãos [Chiquinho Brazão e Domingos Brazão] foram os mandantes do crime da Marielle, eu acho que isso deixa um recado muito claro de pensar em quem elegemos.
Eu não sei qual será a solução do Rio de Janeiro. O que eu sei é que o que a Mari defendia, o que eu defendo e tantas outras pessoas defendem é uma vida digna, um lugar seguro para crianças, mulheres, homens, pessoas negras e pessoas pobres.
Não pode ser um retrato do cotidiano, tinha que ser uma exceção o que aconteceu com a Marielle. Vamos continuar lutando por um lugar e um país mais seguro.
Em determinado momento do julgamento, a filha da Marielle estava com a cabeça baixa e a senhora pediu para que ela levantasse a cabeça. O que significa esse gesto?
A gente tinha duas missões grandes ali. Lutar pela justiça e pela memória da Marielle, mas também defender o legado da Marielle.
As pessoas nos humilharam muito. Eu sempre peguei a cabeça da Luyara e a levantei, porque ela tem que ter muito orgulho da mãe que ela teve. Erguer a nossa cabeça significa também que, mesmo diante da dor, das violências vividas, das tentativas de silenciamento e apagamento, de tudo o que a gente tem passado até aqui, a gente precisa e vai seguir de cabeça erguida.
Ninguém vai encontrar algo que a minha irmã tenha feito de errado enquanto parlamentar. Ela fez um mandato muito digno.
O ex-deputado Marcelo Freixo disse que o julgamento era importante, mas era ainda mais importante que Marielle fosse conhecida pela história de vida dela.
Quando tentam nos atacar, dizem que as pessoas não sabiam nem que a minha irmã existia. Infelizmente, o sistema político do nosso país é feito para que mulheres não entrem e muito menos permaneçam.
É triste que a Mari tenha sido reconhecida após um assassinato tão cruel. É importante dar luz a esses fatos, mas também a todo o trabalho, tudo o que ela fazia, antes mesmo de ser vereadora. Ela não chega de paraquedas. Quantos familiares, que perdiam seus filhos pela violência, ela estava lá ajudando e acolhendo?
É isso que eu levo da minha irmã. O maior legado de Marielle é, sim, a luta dela por todas as pessoas que se representam e se sentem representadas por ela, no nosso país e no mundo.
Ministra, como foi para a senhora estar nesse lugar depois de ficar sob os holofotes com o caso de importunação do Silvio Almeida?
Ninguém que passa por nenhum tipo de violência vai se sentir à vontade. Ainda mais quando tem essa repercussão.
Qualquer mulher se sentiria e se sente exposta quando vive momentos como esse. Não só publicamente, mas internamente, consigo mesma, refletindo tudo o que passou e o quanto tem que ser forte para sobreviver, para ressignificar e para seguir adiante.
A minha família, desde 2018, vive momentos difíceis, mas tem alguns aprendizados. Nenhuma mulher merece passar por isso e nenhuma mulher deveria ser exposta a nenhum tipo de situações como essa.
Não que tenha alguma comparação, mas nenhuma mulher deve sofrer violência política de nenhum tipo.