Na semana em que Fernanda Torres se tornou a primeira brasileira a vencer o Globo de Ouro, completam-se dois anos da tentativa de golpe de Estado a que assistimos, ao vivo, em imagens estarrecedoras da invasão dos prédios-sede dos Três Poderes em Brasília (DF). Duas notícias que se conectam ainda mais por uma terceira: durante as solenidades em memória dos atos golpistas de 8 de janeiro 2023, foi instituído oficialmente o Prêmio Eunice de Paiva de Defesa da Democracia.
A premiação foi criada pela Advocacia-Geral da União (AGU) e será destinada anualmente a cidadãos e cidadãs que “tenham colaborado de maneira notável para a preservação, restauração ou consolidação da democracia no Brasil, assim como para o avanço dos valores constitucionais do Estado Democrático de Direito”, segundo nota do órgão.
Interpretada por Fernanda Torres, Eunice Paiva (1929-2018) é considerada um símbolo da luta contra a ditadura militar no Brasil. Por décadas, ela batalhou pelo reconhecimento do Estado do assassinato de Rubens Paixa, seu marido e ex-deputado, preso em 1971. Seus restos mortais nunca foram encontrados.
O filme do diretor Walter Salles resgata uma das tantas histórias de um período com o qual o Brasil ainda tem muita dificuldade de lidar. Histórias que só vieram, em detalhes escabrosos, ao conhecimento público graças à Comissão Nacional da Verdade (CNV) criada em 2011 e instituída em maio de 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff.
Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e autor do livro em que o filme é baseado, afirmou que a escrita da obra só foi possível por conta do trabalho da comissão, cujo relatório final foi entregue em dezembro de 2014. Em linhas gerais, o documento revelou os nomes de 377 agentes responsáveis, de forma direta ou indireta, pela tortura e morte de presos políticos entre 1964 e 1985. Também comprovou ocultação de cadáveres, detenções ilegais, locais de tortura e execuções, entre outros crimes contra os direitos humanos.
Enquanto comemoramos, em clima de Copa do Mundo, o feito inédito de uma atriz brasileira, não é possível deixar de lado o peso que o filme tem em um contexto de ataques sistemáticos e frequentes, dentro e fora das redes sociais, à democracia.
Para além da infinidade de memes e do enorme engajamento que brasileiros e brasileiras têm dado aos posts nas páginas oficiais das premiações, enviando mensagens até para artistas que aplaudiram Fernanda Torres, como é o caso da britânica Tilda Swinton, é preciso valorizar “Ainda Estou Aqui” como um exercício de memória a favor dos direitos humanos e em defesa do sistema democrático do Brasil.
O filme nos ajuda a olhar para um passado recente com a consciência de que as piores partes dele estão, cotidianamente, à espreita das nossas instituições, que precisam ser protegidas e fortalecidas de forma perene. A análise crítica desse período tão brutal da nossa história, bem como das produções midiáticas dele derivadas e até mesmo das reações manifestadas em mídias sociais, é parte essencial desse processo. Educação para a democracia e educação midiática caminham de mãos dadas.