Apesar da rebelião dos fazendeiros europeus, particularmente os franceses, contra o acordo da União Europeia com o Mercosul, não existe risco de produtos agrícolas sul-americanos baratos inundarem o velho continente e provocarem o caos e a falência das propriedades rurais por lá. O tratado, particularmente no setor agrícola, não é exatamente de “livre comércio” e mantém uma série de taxações, cotas e salvaguardas.
Isso fica notório no setor de carne bovina, em que a abertura se limitará à cota adicional de 99 mil toneladas, de forma escalonada em seis estágios, com alíquota reduzida de 7,5%. Após entrar em vigor, daqui a cinco anos, essas 99 mil toneladas significarão apenas dois hambúrgueres adicionais por ano para cada europeu. No setor de aves, de forma semelhante, a abertura limitada de mercado ao Mercosul significará a entrada de dois filés de peito adicionais por ano. Os cálculos são de Bruno Capuzzi, economista brasileiro que leciona no Instituto Universitário Europeu da Itália.
Analistas do mercado de carne do lado de cá do Atlântico concordam que as cotas limitam qualquer impacto mais significativo do tratado no setor de carnes, que deve continuar tendo no mercado asiático o principal cliente. Sozinha, a China importou no ano passado 15 vezes mais carne bovina brasileira do que todos os países europeus.
Sem cotas, Brasil dominaria mercado de carnes europeu
As 99 mil toneladas adicionais representam apenas 1,6% do consumo anual da Europa. E menos de metade do total atualmente já importado do Mercosul, de 196 mil toneladas. Para aves, a cota de 180 mil toneladas representa 1,4% da produção europeia, enquanto para açúcar o teto é de 1,2% da produção.
“Se não houvesse essas cotas, o Brasil certamente dominaria o mercado de carne bovina na Europa. Porque a nossa carne é muito boa, muito mais barata e nosso sistema de produção é muito mais racional”, sublinha Alcides Torres, analista da Scot Consultoria. Nos últimos anos, os pecuaristas brasileiros aprenderam a trabalhar sem subsídios e com custos baixos. Se não fossem as cotas, conclui Torres, “a nossa carne bagunçaria o coreto da União Europeia.”
Ainda assim, o Brasil pode dobrar o volume exportado para a Europa após ratificação do acordo, mesmo com a camisa de força das cotas e alíquotas de 43% para os embarques gerais de carne.
Lygia Pimentel, estrategista-chefe da consultoria Agrifatto, diz que a Europa poderia saltar de uma fatia de 3% a 4% para 8% a 10% como destino das exportações. “Dado que eles querem um boi específico, que não pode ser proveniente de áreas desmatadas, mesmo que legalmente, a partir de 2021, talvez a gente consiga colocar um prêmio nesse animal. A Europa tradicionalmente paga melhor”, observa.
Preço melhor, exigência maior
Realmente, o mercado europeu paga melhor, mas nem sempre o suficiente para entusiasmar o pecuarista brasileiro a atender uma série de exigências adicionais, como boi à pasto, rastreável desde os 10 meses de idade e jovem, com somente quatro dentes incisivos permanentes.
Neste ano, até novembro, segundo levantamento da Scot Consultoria, o Brasil exportou 58,3 mil toneladas de carne bovina para a União Europeia. O preço médio alcançado foi de US$ 7,67 o kg, ou 68,8% mais do que a média dos embarques para outros destinos. Tal diferença se justifica devido às exigências sanitárias e ambientais particulares dos europeus e pelos cortes traseiros, mais nobres e valorizados. No frango ocorre algo parecido, e os europeus pagaram este ano 49,5% mais do que a média geral, enquanto na carne suína o “ágio” atingiu 34,3%.
Da carne bovina exportada pelo Brasil, 3,39% vai para a União Europeia e 52,22% para a China
Dentre as três carnes, os melhores prognósticos estão reservados aos frangos e suínos. “Não temos um grande concorrente nessas proteínas, somos disparados o maior produtor do Mercosul. O Brasil vai conseguir absorver quase integralmente essas cotas. Mas não são volumes grandes, 180 mil toneladas de carne de frango e 25 mil toneladas de carne suína. Não vão mudar a cara dos mercados de carne brasileira, mas devem ajudar na distribuição e pulverização das vendas, e isso é um progresso importante”, sublinha Fernando Iglesias, analista da Safras & Mercado.
“O Brasil é o único país do mundo que tem as condições necessárias para atender tudo o que eles pedem, desde que paguem um preço justo pelas proteínas de origem animal”, sublinha Iglesias.
Corrupção da virtude
Um ponto de atenção no jogo diplomático e comercial que envolve os detalhes do tratado está na chamada “corrupção da virtude”. “Eles usam uma virtude, por exemplo, a preocupação com a questão sanitária, para disfarçar barreiras comerciais e proteger a sua própria carne”, aponta Lygia Pimentel. É na racionalidade do debate, e na análise comparativa, que o Brasil deveria apostar.
“Hoje a carne brasileira é produzida a pasto em 90% do tempo de vida dos animais. Temos 100% do gado em alguma etapa da produção passando pelo pasto, e 15% dos animais apenas terminados em confinamento. Nós não usamos hormônios promotores de crescimento, que, por sinal, são usados nos EUA; a gente não tem suplementos alimentares indutores de ganho de peso, apenas concentrado, ração e aditivos liberados. Os europeus usam uma dieta muito mais intensa do que a nossa, que é muito mais a pasto do que confinamento. E eles lá, pelo inverno rigoroso, utilizam muito mais suplementos do que nós”, sublinha Pimentel.
Para entrar em vigor, a parte econômico-comercial do tratado União Europeia-Mercosul precisa ter maioria qualificada do Conselho Europeu. Ou seja, 55% dos Estados-membros que representem 65% da população da União Europeia. No Mercosul, terá de passar pela aprovação dos legislativos de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. A Bolívia ainda não integra o acordo nesta fase.