A filha de 14 anos de uma moradora de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, tem crise de ansiedade ao ver helicópteros sobrevoando a favela e não sai na rua quando há carros da Polícia Militar por perto. O trauma começou há alguns meses quando PMs invadiram sua casa em busca de traficantes enquanto a mãe trabalhava e ela estava sozinha em casa.
Ataques de pânico também se tornaram sequela para o motoboy Evandro Alves da Silva, 44, atingido por tiros de espingarda calibre 12 disparados por policiais militares da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) durante a Operação Escudo, em Santos, no litoral paulista, em agosto do ano passado.
No começo, sua mulher, Anna Marques, 42, pensou que os episódios de falta de ar fossem decorrentes da lesão no pulmão causada pelos disparos, mas o quadro se agravou. “Tenho cisma de perseguição. Eu vejo uma viatura e fico paralisado quando um policial passa e me olha, eu já acho que ele está me reconhecendo, que vai querer fazer alguma coisa comigo”, diz ele, que ficou 45 dias internado, dos quais 23 estava em coma. Teve que retirar o baço e fraturou oito costelas após cair de uma altura de cerca de 7 metros para fugir.
O medo faz a família sair de casa toda vez que a polícia entra na favela. “A gente já pega a barca e vai para Santos”, diz Anna. Quando foi atingido, o motoboy tinha saído há poucos meses da prisão após ficar 20 anos detido por ter participado de um sequestro relâmpago seguido de homicídio, e tentava retomar a rotina fora da cadeia.
“Eu que recuperei o Evandro, eu mostrei para ele que vale a pena trabalhar e viver com a família, e o Estado destrói isso em apenas um dia”, diz Anna. “Ter antecedentes criminais é um estigma de criminoso para o resto da vida.”
A polícia alega que ele estava armado e resistiu à prisão. A família nega, e afirma que ele estava nu, prestes a entrar no banho, quando os oficiais invadiram a pequena casa recém alugada no morro José Menino, em Santos. O processo corre em sigilo. “Fica a sensação de impunidade”, diz ele.
Assim como o motoboy de Santos, o garçom Bruno de Souza, 33, é um homem negro e também sofreu violência policial. Morador do Capão Redondo, periferia da zona sul, ele conta que há sete anos estava na casa da mãe quando dois policiais invadiram o local. “Estava com meus pais, minha mulher grávida e uns amigos jogando dominó. Disse que podia checar o documento de todo mundo porque lá é tudo trabalhador”, conta.
Em seguida, ele diz que um dos agentes fez sinal para o outro espirrar gás de pimenta em todos. “Ele sacou a arma e atirou para cima depois que eu o xinguei. A gravidez da minha mulher era de risco e eu fiquei nervoso”, diz.
Pesquisa Datafolha recente apontou que para 79% dos brasileiros, a polícia é mais violenta com negros do que com brancos. Segundo o levantamento, 28% dos brasileiros já foram parados na rua para uma revista policial. O número é maior entre pretos, 34%, ante 29% dos pardos e 24% dos brancos.
São Paulo foi o estado de origem do maior número das denúncias de abuso policial recebida por ouvidoria especializada no tema disponibilizada desde setembro pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
Em três meses, das 67 comunicações registradas, 39% vieram do estado; 15% de Minas Gerais e 12% de Goiás.
Episódios recorrentes de violência policial criam uma sensação generalizada de medo e insegurança na sociedade, segundo a psicóloga Marisa Fefferman, pesquisadora do Instituto de Saúde. “Há a sensação de que qualquer um pode morrer em qualquer momento”, diz. “É uma situação de descontrole que faz com que toda periferia que já vivia com medo entre em pânico.”
Individualmente, as vítimas diretamente afetadas pelas ações de violência policial podem desenvolver quadros de estresse pós-traumático, ansiedade generalizada e síndrome do pânico, principalmente as que moram na periferia, de acordo com a psicóloga Andrea Arruda. “Têm impactos individuais e coletivos. É um trauma que atinge toda uma comunidade que se identifica com o perfil das vítimas.”
No último mês, a PM paulista matou um homem negro que tinha furtado itens de limpeza em um mercado no Jardim Prudência, na zona sul da capital, atingiu e matou um menino de 4 anos em operação no Morro de São Bento, em Santos, e também um estudante de medicina na Vila Mariana durante abordagem.
No mesmo período, um homem foi jogado de cima de uma ponte por um PM em Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo, e uma mulher de 64 anos saiu ferida de um confronto com policiais na garagem de casa durante tentativa de apreensão de uma moto da família, em Barueri.
Diante da repercussão dos casos, o governador disse, no dia 3 de dezembro, que policial militar que “atira pelas costas” e “chega ao absurdo de jogar a pessoa de uma ponte” não está à altura de usar a farda da corporação.
A letalidade policial teve alta durante sua gestão. Foram 580 mortos no acumulado de janeiro a setembro de 2024, com aumento de 55% ante o mesmo período de 2023, que teve 374 óbitos. A Ouvidoria da Polícia recebeu 40% mais denúncias de agressão cometidas por policiais militares em serviço no estado nos primeiros 11 meses de 2024, na comparação com o mesmo período de 2023.
Outro morador de Paraisópolis, de 61 anos, conta que já se habituou às abordagens policiais na oficina onde trabalha há 25 anos, em uma das ruas mais movimentadas da favela. O portão que dá acesso ao pátio usado como estacionamento não tem mais cadeado porque ele sabe que será quebrado em uma próxima ação policial, como já aconteceu reiteradas vezes. Com medo de represálias, ele não quis se identificar, e conta que fica apreensivo quando vê um carro de polícia passar.
Há alguns anos ele ficou 13 dias preso porque foi encontrado um carro roubado no estacionamento. Vizinhos foram à delegacia depor e a acusação foi retirada. Antes disso, ele teve a oficina arrombada por policiais militares em busca de drogas. O forro do teto foi quebrado, e um saco com mantimentos foi rasgado.
As recorrentes abordagens violentas na favela levaram moradores a criarem um comitê que reuniu as denúncias recebidas e estabeleceu diálogo com o comando da PM. “Só depois disso tivemos um pouco de paz”, diz o líder comunitário Janilton Jesus Oliveira, 48. “Eles entravam nas vielas fazendo tiro ao alvo para atingir quem estivesse na frente e impediam o comércio de funcionar de maneira aleatória.”
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que não tolera desvios de conduta e que as abordagens seguem protocolos rigorosos. “As denúncias apontadas serão investigadas e, caso confirmadas irregularidades, os responsáveis serão devidamente punidos.”