Ao menos em princípio, não tenho nada contra a ideia de usar a sabedoria antiga para tentar resolver problemas modernos –desde que, é claro, testemos empiricamente o tal “conhecimento ancestral” antes de sair receitando o dito cujo para Deus e o mundo.
Mas tem outro obstáculo considerável nessa lógica, e pouca gente parece considerá-lo. Acontece que é preciso ter algum grau razoável de certeza sobre qual era, afinal de contas, a tal sabedoria antiga. E isso depende das ferramentas e das premissas que usamos para investigar o passado, as quais podem distorcer o retrato que traçamos dele.
Pensemos, por exemplo, na dieta dos nossos ancestrais mais remotos. Na trajetória de uns 7 milhões de anos da linhagem da humanidade, os vestígios mais visíveis que chegaram até nós são basicamente de dois tipos: ossos (os nossos e os de outros animais) e instrumentos de pedra.
Por si só, esse fato já enviesa a visão que temos da dieta desses antepassados. Ora, é muito mais fácil associar uma ponta de lança ou um machado de pedra com o abate e o descarnamento de um mamute do que o uso de outras ferramentas antigas com o processamento de tipos diferentes de comida. Afinal de contas, o osso de mamute já está ali, quebrado em pedaços ou, com sorte, até com uma ponta de lança enfiada nele.
Juntemos essa facilidade observacional com o fato de que a proteína e a gordura das presas capturadas pelos hominínios (membros da linhagem humana) de fato eram recursos alimentares muito valiosos, e o resultado é a impressão de que a caça era a chave para a sobrevivência de nossos ancestrais.
Filtrada por modismos nutricionais, essa ideia inspirou a tal “dieta paleo”, que dá grande peso ao consumo de carne como algo adequado ao funcionamento natural do organismo humano.
No entanto, o uso de técnicas mais refinadas de análise tem demonstrado cabalmente que essa mania de achar que a pré-história humana foi um churrasco interminável não se sustenta. É aqui que entra um importante sítio arqueológico do nordeste de Israel, conhecido como Gesher Benot Ya’aqov.
Com idade estimada em 780 mil anos, o sítio, além de trazer algumas das evidências mais antigas para a produção de fogo por hominínios, também revela um intenso aproveitamento de recursos alimentares vegetais por parte deles.
As informações, que acabam de sair na revista científica PNAS, vêm de uma análise de grãos de amido que ficaram preservados nos instrumentos de pedra do sítio –o ato de “martelar” diferentes tipos de plantas foi formando pequenos buracos nas ferramentas, nos quais ia ficando presa a matéria vegetal.
Liderados por Hadar Ahituv, pesquisador da Universidade Bar-Ilan, os pesquisadores identificaram nas ferramentas grãos de amido associados a versões selvagens de plantas como trigo, cevada, aveia, ervilha, lentilha e fava.
Até aí, a lista parece uma prévia dos cereais e das leguminosas que seriam domesticados centenas de milhares de anos mais tarde na mesma região. Mas há também várias espécies ainda selvagens, como bolotas de carvalho ou raízes e tubérculos de plantas aquáticas.
Resumo da ópera: nossos ancestrais sempre comeram um pouco de tudo do que seus ambientes lhes ofereciam. O resto é conversa fiada de “carnista” sem dois neurônios.
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