Que me perdoem os leitores se pareço monotemático, mas ainda escrevo esta coluna sob os efeitos da virada do ano e, em tais circunstâncias, é natural pensar em caminhos que se bifurcam no tempo. Quando a gente considera essas coisas em termos históricos amplos, é fácil cair na tentação de achar que certas trajetórias são inevitáveis e inexoráveis: uma vez dado o primeiro passo, não dá mais para voltar atrás, por todos os séculos dos séculos.
Será? Provavelmente não, indica um obscuro e fascinante sítio arqueológico da antiga Mesopotâmia.
Digo “obscuro” porque, ao contrário da Babilônia, de Nínive ou mesmo da fama bíblica de “Ur dos caldeus”, escarafunchadas por arqueólogos desde o século 19, a localidade de Shakhi Kora, no nordeste do Iraque, só começou a ser escavada sistematicamente em 2019.
Situada em território curdo, perto de um afluente do rio Tigre, a área abrigava assentamentos bastante modestos no quarto milênio antes do nascimento de Cristo, fase em que as primeiras cidades propriamente ditas do território mesopotâmico, entre eles a célebre e poderosa Uruk, estavam tomando forma.
Os séculos de estudo sobre esse processo trouxeram muitas informações, embora, é claro, ainda haja muito a descobrir. Uma das coisas que parecem estar ligadas à consolidação das primeiras cidades e sua transformação em Estados com E maiúsculo na região é algum tipo de centralização e padronização econômica.
Isso significa que a produção de bens e serviços, antes quase 100% realizada de maneira informal em cada unidade familiar ou moradia, começa a acontecer de forma ao mesmo tempo mais coletiva e impessoal.
Por exemplo, digamos que, por meio de coerção ou convencimento, os funcionários de um templo poderoso conseguem centralizar a produção de cerveja (já então um produto apreciado) ou tecidos de linho nas dependências do templo, reunindo ali vários trabalhadores.
Essa mão de obra, então, pode ser paga em espécie, com certa quantidade de cevada (registrada, inclusive, nos arquivos do templo, com a ajuda de uma nova tecnologia, uma tal de “escrita”), ou com refeições no “bandejão” do templo, servidas em recipientes de cerâmica simples, todos com a mesma cara.
Há indícios de que sistemas como esse emergiram em diferentes áreas da Mesopotâmia. Mas a história contada pelo sítio de Shakhi Kora revela um cenário mais complicado.
Em artigo na revista especializada Antiquity, uma equipe liderada por Claudia Glatz, da Universidade de Glasgow (Reino Unido), descreve uma curiosa reviravolta. Mais ou menos entre 3900 a.C. e 3400 a.C., os habitantes da região seguiram a progressão supostamente “inevitável”: assentamentos que iam crescendo de tamanho, construindo muralhas e até as colunas do que parece ter sido um templo.
Multiplicaram-se até as cumbucas de cerâmica padronizadas, tipo “bandejão”, nas quais servia-se um ensopado de carne, segundo indicam análises químicas. No entanto, aparentemente sem violência, essa centralização foi abandonada.
Em poucas décadas, as pessoas da região voltaram a viver em vilarejos menores e menos centralizados, situação que perdurou por mais de um milênio. Por quê? Não se sabe, mas, ao que parece, não havia nada de inevitável na suposta “marcha da civilização”.
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