Uma a uma, elas caminham pela longa passarela rosa com seus corpos —na esmagadora maioria altos e muito magros— cobertos apenas por sutiãs, calcinhas, corpetes e baby dolls. Nas costas carregam pesados adereços de asas, como as de anjos, ou laçarotes, como os de embrulhos de presentes.
Ao darem de cara com uma das muitas câmeras que as acompanham ao longo da imensa passarela, os rostos sérios e perfeitos se iluminam, como se encontrassem do outro lado da lente um outro rosto conhecido. Essas amazonas então sorriem, piscam, mandam beijos e desenham corações com as mãos projetando uma imagem de simpatia, amabilidade e sedução.
Estavam lá todos os clichês que tornaram o desfile da Victoria’s Secret mundialmente conhecido. Até os nomes que cruzaram a passarela eram, em boa parte, os mesmos. Incluindo o time de brasileiras cujas carreiras foram alavancadas pela exposição que vinha a reboque da presença no show anual da marca de lingerie mais famosa do mundo.
Mas entre os rostos antigos, alguns novos chamavam a atenção. Nomes como Ashley Graham e Paloma Elsesser seriam impensáveis no desfile até poucos anos atrás. Seus corpos cheios de curvas não eram até então bem-vindos na passarela da Victoria’s Secret.
Também era impensável até o último desfile da marca, em 2018, ver mulheres com mais de 50, como Carla Bruni e Kate Moss, ou corpos trans, como os de Valentina Sampaio e Alex Consani.
A mudança não é fruto de um súbito despertar da marca. Pelo contrário, enquanto concorrentes como Savage x Fenty, da cantora Rihanna, se conectaram com a demanda por representatividade ainda em 2018, a Victoria’s Secret parecia ignorar as mudanças ao seu redor.
Naquele mesmo ano, Ed Razek, que ocupava o cargo de CMO da marca, disse em entrevista que não incluiria modelos plus size ou trans no evento porque isso acabaria com a “fantasia” do show. Razek deixou o posto logo em seguida, em meio a escândalos de que seria responsável por instaurar uma cultura de bullying e assédio dentro da Victoria’s Secret.
Claramente alguma coisa mudou na empresa desde então, e o desfile que aconteceu na semana passada depois de um hiato de cinco anos é prova disso. No entanto, ao ver as manchetes exaltando a diversidade vista na passarela nesse ressurgimento da marca me senti profundamente incomodada.
O motivo da minha revolta, obviamente, nada tinha a ver com aquelas modelos de corpos e idades diversos que, pela primeira vez, figuravam entre os demais corpos jovens e magérrimos que sempre estiveram lá. Minha revolta é que o esforço foi pouco e porco.
Os poucos corpos maiores cobertos, as poucas mulheres mais velhas com rostos e corpos ainda muito dentro do padrão de beleza. Todas ainda embaladas para presente, emulando uma simpatia obediente que contrasta com o discurso de empoderamento que a marca tenta emplacar nesse novo momento.
Em dado momento, a cantora Cher entra em cena e, enquanto as modelos desfilam, canta seu famoso sucesso: “Do you believe in life after love?”. A letra diz: “Eu tive tempo para pensar e talvez eu seja boa demais para você”. Talvez essa seja a mensagem que tenhamos de passar para essa marca e seu pobre esforço de se travestir de um novo tempo. Somos boas demais para isso.
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